Entre os 30 mil habitantes de Nazaré da Mata, localizada a 65 km de Recife (PE), é comum a seguinte frase na época do Carnaval:
– Hoje não posso, tenho maracatu.
Não é para menos: o município é a terra do maracatu rural – festa que combina ritmos e danças com origens de religiões de matriz africana, além de figurinos coloridos e extravagantes. Esse universo carnavalesco é o eixo principal de Azougue Nazaré, longa pernambucano em cartaz em Porto Alegre desde quinta-feira (14).
A princípio, o filme acompanha as tensões de personagens que têm suas vidas atreladas ao maracatu, sendo que o principal deles é o carismático Catita (Valmir do Coco). Apaixonado pela folia, ele participa da festa escondido de sua esposa, Darlene (Joana Gatis) – uma evangélica fervorosa que sente a ausência do marido. Cantor de maracatu, Valmir estreia muito bem em seu primeiro papel no cinema, seja pelos momentos cômicos ou pela entrega em cenas catárticas.
Incomodada pela falta de espiritualidade do marido, Darlene que converter Catita à religião. Para tirar o demônio da folia do corpo do marido, ela recorre a um pastor interpretado por Mestre Barachinha, uma das lendas do maracatu de Nazaré da Mata – aliás, ele e Valmir, entre outros nomes do elenco do filme, foram recrutados no Maracatu Cambinda de Brasileira. Sem querer dar spoiler, o desenrolar da trama do líder religioso referencia o caso verídico do pastor Pedreiro Justino de Oliveira e sua confusão com as palavras, um viral da internet brasileira.
Também há o romance do taciturno Ítalo (Edilson Silva) com Tita (Mohana Uchôa), uma mulher que não suporta mais o casamento que mantém com um chaveiro. Embora seja uma paixão que aflora em meio ao maracatu, essa parte da narrativa se torna um tanto inacabada, porém funciona na composição daquela comunidade.
Além disso, há a trama misteriosa de um pai de santo que pratica um ritual com cinco caboclos de lança, que trafegam pela eletricidade e praticam assassinatos — o que desperta a ira da comunidade evangélica. Nesse ponto, Azougue Nazaré transita pelo cinema de gênero. Talvez aqui a trama merecesse mais desenvolvimento e justificativa, embora simbolize uma parte da população que resiste e luta para manter suas tradições acesas.
Embora apresente uma miscelânea de tramas e gêneros (drama, musical, comédia e fantástico), aparentando ser um tanto complexo à primeira vista, o longa não é ininteligível e consegue flutuar com primor pela cultura popular, sem entrar em estereótipos e conectado à contemporaneidade. Um exemplo são as batalhas de entoadas (cantos do maracatu) ocorrendo por áudio do WhatsApp. O responsável por essa fluidez é o diretor de Azougue Nazaré, Tiago Melo.
Raízes do fantástico e intolerância religiosa
Tendo trabalhado como produtor em filmes de Kleber Mendonça Filho (Bacurau e Aquarius) e Gabriel Mascaro (Divino Amor), Melo faz a sua estreia como diretor de longa com Azougue Nazaré – no currículo tem o curta Urânio Picuí (2011). Inicialmente, o plano era rodar um documentário sobre o maracatu. No entanto, ele percebeu que já há muitas produções documentais sobre esse folclore. Então, seguiu o caminho de uma ficção que permeia diferentes gêneros narrativos, como o fantástico.
— Me interessa muito essa camada religiosa. Tem toda uma parte muito mística do maracatu. Havia relatos de caboclos de lança que eram possuídos por entidade, que ganhavam poderes como de teletransportar e voar. Peguei todas essas histórias e coloquei como se fosse no presente. Hoje é muito difícil acreditarmos em algo sobrenatural. Vão falar "cadê a imagem?" ou "cadê o link na internet" — destaca Melo. — Essa parte do fantástico vai muito de encontro à raiz do maracatu.
Por outro lado, o filme traz uma tensão entre evangélicos/neopentecostais e o maracatu.
O pastor Barachinha quer converter os demais moradores de Nazaré da Mata a abandonarem a prática folclórica, o mesmo que Darlene espera de seu marido, Catita.
Ao exibir essas tensões, Melo sublinha que queria fazer uma crítica à intolerância religiosa.
— É algo que sempre existiu no Brasil e acho que agora está mais declarada, com discursos de ódio. Não é só uma defesa da religiões de matrizes africanas, mas também da religião evangélica, que também sofre muita intolerância. Quis jogar uma luz sobre esse tema — explica.
Segundo o diretor, essa camada de Azougue Nazaré é muito comum em todos os Estados brasileiros:
–Isso já aconteceu, acontece e vai acontecer ainda mais. Em todo o Brasil nós vemos várias culturas antigas que são exterminadas por uma religião nova que chega e enquadra aquilo como errado. É uma intolerância religiosa, pois a maior parte desses bloqueios atingem aquilo que vem de crenças de matrizes africanas.
AZOUGUE NAZARÉ
- Drama, 14 anos. De Tiago Melo. Brasil, 2018, 82 min.
- Salas e horários: Espaço Itaú 8 (18h) e CineBancários (19h).