Uma pessoa consome crack em frente à câmera. A cena que, no cotidiano dos centros urbanos do Brasil, costuma fazer as pessoas desviarem o olhar ou atravessarem a rua, foi escolhida para abrir o documentário Diz a Ela Que Me Viu Chorar, em cartaz em Porto Alegre no CineBancários e na Cinemateca Paulo Amorim. A diretora Maíra Bühler confronta o espectador com aquilo que ele não quer ver e entrega um filme essencialmente humano, capaz de diminuir as barreiras óbvias entre a pessoa que vai ao cinema e a que vive no ambiente caótico da dependência química e da vulnerabilidade social.
— Acho necessário que possamos estabelecer com pessoas que vivem em extrema vulnerabilidade e com as quais temos uma dívida histórica uma relação que não seja pautada pelo preconceito, pelo medo, pelo moralismo ou qualquer outro conjunto de ideias preconcebidas. O que me motivou a fazer esse filme foi a necessidade de fazer essa viagem ao encontro dos outros — disse a diretora, em entrevista à GaúchaZH.
Diz a Ela Que Me Viu Chorar é ambientado no hotel social Parque Dom Pedro, no centro de São Paulo, que, durante 20 meses, abrigou um programa social dedicado a pessoas com perfil de abuso de álcool e drogas. As filmagens ocorreram de agosto de 2016 a janeiro de 2017, o programa foi extinto em 2018. A câmera, quase sempre estática, passeia pelos apartamentos, corredores, escadas e até aperta-se com os moradores no pequeno elevador do prédio. Uma das decisões mais acertadas do documentário é entregar a narrativa aos universos presentes naquele ambiente, sem direcionar os registros por meio de entrevistas e sem responder a uma temática específica. As pessoas e suas complexidades são a matéria-prima do trabalho.
A experiência sensorial oferecida pelo documentário coloca o espectador a habitar pequenos cômodos, sempre escutando sons de gritos e brigas ao fundo. Ora se está em meio a um casal apaixonado que trava diálogos banais no aconchego da cama, ora se acompanha violentas discussões ou momentos de depressão profunda. Há cenas solares, como aquela na qual os moradores cantam o clássico Maneiras, de Zeca Pagodinho, no terraço do prédio; e há cenas assustadoras, como o registro de uma briga física entre dois moradores, que termina com um deles desacordado e sangrando. Presença garantida em todas as cenas é a cumplicidade entre a câmera e os personagens/situações retratados, resultado de um trabalho que passou muito longe dos cronogramas apressados tão tradicionais no universo da produção cinematográfica.
— Acho que o maior desafio foi entender que a principal coisa que eu precisava fazer ali era não filmar. Às vezes nós passávamos o dia todo no hotel e não filmávamos nada. Ligar a câmera dependia bem menos do que estava planejado e bem mais da vontade dos personagens, de um convite. A partir do momento que começávamos a filmar alguém é porque essa pessoa estava aberta ao cinema, essa aventura incrível que nos unia — reflete a diretora.
Produzido pela premiada cineasta Anna Muylaert (de Que Horas Ela Volta?), Diz a Ela Que Me Viu Chorar adentra infernos particulares com verdade e respeito aos retratados. É como se a câmera assumisse um papel de confidente dos personagens, prestando também um serviço social àquelas pessoas. As próprias cenas de consumo de crack (vale lembrar que o filme tem classificação de 16 anos) carregam uma função importante: servem de espelho para os próprios personagens em momentos em que muitos já haviam desistido de se ver.
— Quando já estávamos bem próximos dos personagens, alguns deles começaram a pedir para serem filmados durante o uso (de crack) e depois assistir. A câmera funcionava como uma espécie de espelho, eles então se viam "de fora". A partir daí, de um desejo que veio deles, conversamos bastante sobre colocar ou não as imagens no filme e juntos decidimos que isso fazia sentido desde que o filme não fosse sobre o crack, mas sobre pessoas — defende Maíra.
Diz a Ela que Me Viu Chorar
De Maíra Bühler.
Documentário, Brasil, 2019, 83min, 16 anos.
Em cartaz no CineBancários e na Cinemateca Paulo Amorim.