O ano é 2027 no filme Divino Amor, que entrou em cartaz nesta quinta-feira (27). Nesse futuro imaginário, a doutrina evangélica e a agenda conservadora guiam o Brasil, que também é controlado por uma burocracia kafkiana. O Carnaval foi trocado por uma grande rave de louvação cristã, as mulheres vão à praia cobertas até o pescoço e há um sistema público que regula a fertilidade feminina. É um país ultranacionalista, focado na família tradicional.
Dirigido pelo pernambucano Gabriel Mascaro (Boi Neon), que assina o roteiro ao lado de Rachel Ellis, Esdras Bezerra e Lucas Paraizo, Divino Amor pode aparentar ser a alegoria de um futuro próximo. Afinal, o número de evangélicos aumentou 61% em 10 anos, conforme o Censo 2010.
– Esse roteiro começou a ser escrito há quatro anos. Venho de classe média baixa e via meu bairro se transformando muito em função de igreja evangélica. Tenho uma experiência muito pessoal e afetiva de ver esse entorno se modificando e também ver as pessoas que eu tinha afeto também se convertendo. Quando comecei a perceber uma inclinação na política para o conservadorismo há cinco anos, passou a ser minha prioridade escrever e dedicar um filme para problematizar esse tema, além de trazer experiências emocionais – relata Mascaro. – Curiosamente, eu rodei o filme antes de Bolsonaro se candidatar – complementa.
Quando o trailer de Divino Amor foram divulgados na web, houve quem interpretasse o filme a uma possível personificação ao governo do presidente Jair Bolsonaro, eleito com apoio dos evangélicos no ano passado. No entanto, a alegoria proposta na ficção científica de Mascaro não se baseia em uma representação específica.
– O longa não conta com uma personificação mais clara, mas gera um exercício constante de reflexão sobre as políticas que estão sendo postas em práticas hoje e também o que virou o Brasil em 2027. É natural essa associação com o presente, pois todo filme que trabalha com imaginário e uma leitura de futuro tem como fundamento repensar o tempo vigente – atesta o cineasta.
Divino Amor não é uma obra antirreligiosa. Com trabalhos caprichados de Thales Junqueira na direção de arte e de Diego García na direção de fotografia, o filme se esbalda em paletas de cores neon, ambientes esfumaçados e oníricos para dar contornos futurísticos em sua cultura evangélica reinventada. Os hinos gospel ganham roupagem eletrônica. O longa também não apela para a estética monocromática e estereotipada do evangélico – homens de terno e bíblia em punho, mulheres de saia comprida e cabelo preso –, buscando apresentar uma reinterpretação fora das caricaturas. Por outro lado, as cenas que envolvem o ambiente monótono da burocracia são todas em tons cinza e branco.
– Nós fizemos várias leituras de muitos evangélicos que se mostravam insatisfeitos com sua representação simbólica de suas vestes em novelas, que sempre criam um imaginário muito tradicional e caricato. Sob esse guarda-chuva evangélico, há diversas congregações e práticas. É uma religião contemporânea, que consegue se atualizar muito rapidamente. Procuramos pintar e fabular uma alegoria de uma religião em 2027 tão sofisticada e complexa, que é capaz de se apropriar de referências que hoje associamos a cultura liberal e progressista, como a rave, a música eletrônica e as práticas eróticas, e, assim, radicalizar ainda mais a agenda ultraconservadora – detalha Mascaro.
DISTOPIA OU UTOPIA
O Brasil de 2027 imaginado em Divino Amor soa como distopia dependendo dos aspectos, mas é uma utopia para a protagonista, Joana (Dira Paes, em trabalho esplendoroso) – e, talvez, para uma parcela da população brasileira. Ela é uma escrivã de cartório e uma mulher muito devota. Sempre que atende a um casal que está se divorciando, ela tenta convencê-lo do contrário. Para a funcionária pública, a manutenção da família cristã faz parte do seu projeto de fé. Contudo, o casamento de Joana com seu marido, Danilo (Julio Machado), está ruindo. Ela não consegue engravidar. Reza por um milagre divino para ter um filho.
Sem lidar propriamente com um antagonista, Joana é uma anti-heroína. Ela não está disposta a lutar contra o contexto que está inserida, tampouco parece se incomodar com a burocracia que lida. É uma personagem reta em seu propósito.
– É sensível de perceber que nosso país está polarizado. Uma coisa que historicamente é sugerida como distopia para a gente, pode ser um projeto utópico para muitas pessoas. O que o filme coloca é que esses conceitos de distopia e utopia, esse binarismo, já não dá conta mais do presente, muito menos desse futuro que abarca. Talvez a personagem responderia que esse estado de mundo que ela vive é uma utopia – reflete o diretor.
Joana e seu marido passam frequentam uma seita chamada Divino Amor, que só aceita casais. É nas reuniões desse clube que a carga de provocação de Mascaro aumenta, entrelaçando a sua ficção especulativa com o erotismo – na seita há troca de casais legitimada pela fé, uma espécie de "swing gospel".
– Joana se apropria de práticas que poderiam soar hoje como algo liberal, mas em 2027, é um gesto de radicalização de uma agenda conservadora em uma doutrina que permite isso inserida. É o seu corpo a serviço de Deus.
SALAS E HORÁRIOS
CineBancários (15h, 19h), GNC Moinhos 3 (17h40, 22h) e Sala Paulo Amorim (17h30).