Quando apresentou A Cidade dos Piratas na competição nacional de longas-metragens do Festival de Gramado de 2018, o diretor Otto Guerra celebrou como uma grande conquista o ponto final na sua adaptação da obra da cartunista Laerte Os Piratas do Tietê. Da ideia do projeto à exibição no festival, passaram-se mais de 20 anos. Nesta quinta-feira (31), a animação estreia no circuito comercial.
— A primeira versão finalizada do roteiro ficou pronta em 2001, mas mudou completamente. Houve um momento em que Laerte nem queria mais fazer o filme. Repetia que, para ela, os piratas eram “múmias machistas” — disse Otto a GaúchaZH à época do lançamento em Gramado.
Ao longo desse tempo, Laerte passou por várias transformações, tanto na sua obra, que acabou por abandonar o humor calcado em personagens fixos, quanto na sua vida, na qual viveu um processo público de transição de gênero. Enquanto desenvolvia A Cidade dos Piratas, Otto se dedicou a outros projetos: Wood & Stock: Sexo, Orégano e Rock’n’ Roll (2006) e Até que a Sbórnia nos Separe (2013).
Em adição a isso, em 2013 o diretor foi diagnosticado com um câncer de cólon, o que o levou a encarar a produção com um olhar mais radical, fazendo do filme uma mescla com personagens de Laerte e uma reflexão sobre o processo pelo qual a artista passou para redefinir sua sexualidade — e ainda comentar a nova ascensão do conservadorismo e a inclusão do próprio Otto como personagem, espelhando as dificuldades que a produção encontrou para ser realizada.
— Aconteceram muitas reviravoltas na vida da Laerte. O trabalho anterior era ótimo, mas depois ela, como artista, transcendeu o meio da tira de quadrinhos. Eu queria trazer para o filme todas essas mudanças, a questão dela transgênero, a pegada mais abstrata, até minhas dificuldades com o filme, tudo do meu jeito anárquico — explicou Otto.
Entrevista com Laerte
Como foi seu envolvimento com A Cidade dos Piratas?
O Otto me convidou para fazer um filme do Piratas do Tietê na esteira do Rocky e Hudson, do Adão (Iturrusgarai, no longa de 1994). Eu já tinha um esboço de um argumento para uma história maior, que poderia ser um filme. Fomos trabalhando durante um tempo. Houve várias tentativas de roteiro, que ia e vinha. Também aconteceram vários acidentes da vida, falta de grana, outros projetos, crises, além do Otto ter ficado doente. Eu também fui mudando e fazendo coisas diferentes. Quando a gente se reencontrou anos depois, já tínhamos um outro capital de ideias e experiências. Minha tira diária já tinha mudado muito de natureza, como desenhos e propostas que já eram outras. Ele acabou me propondo um roteiro que se inspirava nessa linguagem mais ou menos anárquica das minhas tiras.
Os personagens de Piratas do Tietê ficaram datados para você?
Parei de fazê-los. Aliás, não faço mais personagens. Durante um tempo fiquei fazendo a Muriel, pois me interessava a ideia de transgênero. Mesmo ela acabei parando de fazer. Os piratas pararam também porque são uma linguagem localizada.
Você não quis aparecer no filme, certo? Se restringiu aos depoimentos com imagens de arquivo.
Eu não me restringi, o Otto é que colocou desse jeito (risos). Não sei se eu teria inserido a presença de entrevistas, uma linguagem de televisão, uma coisa transposta. Ele fez e acho que, no final, a coisa toda se harmoniza, pois está discutindo questões pessoais dele, como diretor, e questões pessoais minhas, como autora das histórias. Fica uma meta-meta coisa (risos).
É um filme anárquico e singular, ao costurar diferentes narrativas com uma dimensão contestadora e existencialista, que parece retratar um processo de autoaceitação. O que lhe parece o resultado?
Incrivelmente ficou bom (risos). Otto tem isso, de propostas meio audaciosas, meio porra-louca. Mas que, no fim, dão certo.
Nos seus momentos mais pessoais no filme, parece que há sempre uma procura constante de alguém que não se conforma com os mesmos traços, temas e humor. Podemos enxergar A Cidade dos Piratas como um filme sobre a inconformidade?
Sim! A ideia geral é essa mesmo, uma busca meio permanente. O argumento original dos Piratas seguia a ideia de que esta cidade tal como está hoje ia ser devolvida por termos contratuais para os descendentes de alguém que há 500 anos a alugou para os bandeirantes. Como o contrato venceu, ia ser devolvida do jeito que estava. Esse é o argumento do filme original. É também uma maneira de propor uma espécie de break radical de uma megalópole como São Paulo, que vive de maneira completamente caótica, que tem um sentido de desequilíbrio permanente muito grande. Não sei se a gente chegou a conseguir um resultado bom naquele argumento, a ideia foi outra.
Com o atual contexto político em que o Brasil se encontra, esse é um momento oportuno para a chegada de A Cidade dos Piratas aos cinemas?
Como a parte de execução e elaboração final do filme se deu nos últimos cinco anos, acabou se sintonizando com fatos e processos políticos que são os que estão em vigor. Ninguém achava que o Bolsonaro ia ser eleito no início de 2018, mas o fato de ter sido eleito não é incoerente com o que está acontecendo. Se você estava de alguma forma com a antena ligada, pegou os sinais possíveis, está em condições de falar da realidade que está acontecendo hoje.
Você depara com algum tipo de cerceamento ou mesmo autocensura? Como tem sido ser artista nestes tempos?
Estou numa posição boa. Tenho uma história profissional em relativa segurança e tranquilidade. Tenho amigos e conjunturas de apoios das quais faço parte, também apoio outras, e com isso me sinto à vontade para trabalhar. Trabalho em uma empresa, a Folha de S.Paulo, em que posso exercer minha crítica ao próprio jornal. Mas sei que estamos num campo comum, de defesa democrática da sociedade. Não estou sob pressão insuportável, apenas vivendo como todo mundo: uma situação de perigo crescente e constante. É o que temos e vamos trabalhar com isso.