Diretor que se consolidou como realizador de curtas ao longo desta década, o porto-alegrense Emiliano Cunha, 37 anos, deu um passo além em sua filmografia nesta 47ª edição do Festival de Cinema de Gramado. Ele apresentou na noite de sábado seu primeiro longa-metragem, Raia-4, como parte da mostra competitiva de longas nacionais. Ao mesmo tempo, também está no festival com um curta, Endotermia, pela mostra gaúcha.
Raia 4 centra-se em Amanda, jovem e promissora atleta que só consegue se sentir confortável enquanto nada. Nas demais instâncias da vida pessoal, a menina luta para se adequar. Os pais, médicos cirurgiões, estão sempre ocupados e suas interações com a jovem, mesmo que afetuosas, são descompassadas, sem dar tempo a Amanda de expressar o que realmente quer. Ela passa mais tempo com a empregada e com o treinador, que de certa forma substituem as figuras de autoridade. E convive intensamente com os outros nadadores do clube pelo qual compete. Inclusive Priscilla, outra jovem da mesma idade com quem Amanda estabelece uma relação de rivalidade e de espelhamento (Priscilla, mais expansiva, já namora, já amadureceu sexualmente, enquanto Amanda é tímida, retraída e de poucas palavras, só encontrando tranquilidade em longas sessões de apneia no fundo da piscina).
Com esses elementos, o filme constrói uma mescla de narrativa de formação e de thriller psicológico, uma vez que as microagressões inconscientes que Amanda sofre cotidianamente têm um desenlace final surpreendente.
— A Amanda tem uma necessidade de comunicar uma angústia que ela sente, mas que, pela forma como é recebida, a retrai cada vez mais, ela acaba sendo presa pelo mundo em uma cápsula que vai se tornando a sua realidade — comenta Emiliano.
Para encontrar não apenas as jovens atrizes Brídia Moni e Kethelen Guadagnini, que vivem respectivamente Amanda e Priscilla, mas também os demais jovens nadadores colegas de clube que gravitam em volta de ambas, a produção garimpou adolescentes que eram de fato nadadores competidores.
— Tive de buscar algumas reações em mim muito estranhas, porque eu estava em cena com a minha melhor amiga, e no início não gostei muito de pensar que teria que ter com ela o comportamento que a Amanda tinha com a Priscilla — disse Brídia Moni no debate no dia seguinte à exibição do filme.
— A certo momento, entendi que as duas não são exatamente rivais, mas poderiam ser amigas se algo não se intrometesse no caminho. Foi como eu consegui compreender a relação delas e apresentar na atuação, comentou Kethelen no mesmo bate-papo.
Ele próprio um nadador na juventude, tendo competido pelo Grêmio Náutico Gaúcho, Emiliano queria em tela não apenas atores, mas jovens que soubessem expressar todo o gestual específico de atletas da natação, bem diversos dos do nadador ocasional. A própria escolha do universo da natação como cenário da narrativa foi uma escolha que deu ao diretor a segurança para levar a cabo um filme que seria sua estreia em longa-metragem.
— Acho que muitos autores, quando estão em sua primeira empreitada mais difícil e complexa, decidem falar de um universo que eles conhecem bem, que podem transmitir com propriedade e veracidade. Muito do que a Amanda passa no filme era algo que eu conhecia, a dedicação, as viagens, a convivência com o grupo. Mas claro, não era a minha experiência por ser uma personagem feminina. E aí foi minha vez de ir procurar antigas colegas, para saber como eram as inquietações delas naquele universo, para saber que tipo de realidade era a delas naquele ambiente no qual eu, homem, estava me intrometendo - diz o diretor.
Sócio da Ausgang Filmes Emiliano dirigiu os curtas O Cão (2011), Lobos (2012), Tomou Café e Esperou (2013), e Sob Águas Claras e Inocentes (2016). A maioria deles recebeu algum reconhecimento em Gramado. Ele também foi o responsável pela direção da minissérie Horizonte B (2016), exibida na TVE em 2016. Além de Raia 4, ele também trouxe a Gramado um curta em competição, Endotermia, uma produção quase toda silenciosa sobre dois irmãos sozinhos à espera da volta da mãe que saiu para trabalhar.
— Esse foi um filme que eu inscrevi por mim mesmo, sem consultar meus sócios, e fiquei muito feliz que ele tenha sido selecionado. Ele representa levar adiante algumas coisas mais experimentais que fiz em Raia 4, e o fato de que ambos acabaram concorrendo no Festival é algo muito feliz pra mim, até porque os júris de ambas as mostras não se conservam, então dois colegiados viram méritos nas duas obras — diz.