Sem surpresas na lista de premiados, a festiva cerimônia que marcou a 90ª edição do Oscar reforçou o discurso que enquadra Hollywood em uma nova era. Assédio sexual, relações de poder abusivas, preconceitos e discriminações de quaisquer ordens estão cada vez mais sob vigilância estreita de toda a cadeia produtiva da indústria audiovisual. Inclusão foi a palavra sublinhada na noite de domingo no palco do Dolby Theatre, em Los Angeles. Hollywood tende a olhar cada vez menos para seu umbigo e absorver cada vez mais a diversidade de etnia, gênero e pensamento que regram, de forma fluida ou a duras penas, com avanços e eventuais passos para trás, a evolução da sociedade em todo mundo.
A festa que consagrou como melhor filme a fábula fantástica A Forma da Água, do mexicano Guillermo Del Toro, eleito também o melhor diretor, encerrou formalmente a temporada que foi tenebrosa e também purgadora em Hollywood. Saíram de cena, sob execração pública, figuras como o produtor Harvey Weinstein, medonho símbolo dos predadores sexuais que se julgavam onipotentes, e entraram sob os holofotes as profissionais ativistas dos movimentos #TimesUp e o #MeToo.
Em seu discurso para agradecer o Oscar de melhor atriz, Frances McDormand, de Três Anúncios para um Crime, conclamou todas as mulheres premiadas e indicadas a se levantarem na plateia. E disse:
– Todas temos histórias para contar e projetos a serem financiados. Não nos chamem para conversar depois na festa, marquem uma reunião. Vamos a seus escritórios, ou vocês podem vir aos nossos.
Frances terminou seu discurso citando a expressão “inclusion rider”, que se refere a uma recente cláusula contratual em que atores podem exigir de uma produção elenco e equipe com profissionais que representem melhor a diversidade da sociedade.
A festa teve início com o apresentador e comediante Jimmy Kimmel simulando uma cobertura do Oscar pré-existência da televisão, como na primeira edição do prêmio, em 1929, quando o rádio e os cinejornais em preto e branco levavam ao público o glamour dos astros e estrelas. Para entrar no clima retrô, o palco do Dolby Theatre ganhou um cenário virtual que evocava o estilo art déco em voga naquela época.
Kimmel deu início à cerimônia seguindo a pauta prevista. Fez graça com a trapalhada da troca de envelope que anunciou erroneamente o filme vencedor no ano passado ("Se você ouvir seu nome, espere um pouco antes de se levantar"); falou sobre os abusos sexuais que baniram Weinstein do ofício e da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas ("O Oscar é o prêmio mais respeitado de Hollywood, está com as mãos onde podemos ver, não fala grosserias e não tem pênis. É o tipo de homem que precisamos agora nessa cidade"); e comentou a diferenças de salários entre homens e mulheres na indústria cinematográfica. Mas foi econômico na munição que a classe artística costuma descarregar no presidente dos Estados Unidos, Donald Trump.
Discursos sobre tolerância e diversidade deram a temperatura dessa edição comemorativa do Oscar. A atriz nigeriana Lupita Nyongo e o ator paquistanês Kumail Nanjiani, por exemplo, destacaram em suas apresentações o drama dos "dreamers", como são chamados os imigrantes que se mudaram para os EUA quando crianças e estão agora ameaçados de deportação por Trump. A atriz e cantora trans Daniela Vega, protagonista do longa chileno Uma Mulher Fantástica, vencedor da estatueta de melhor filme estrangeiro, falou sobre o amor rompendo barreiras e preconceitos.
O México de Del Toro, que Trump deseja isolar atrás de um muro, foi celebrado em suas cores e ritmo com a vitória do longa de animação Viva: A Vida É um Festa.
– Sou um imigrante. E o melhor que tem feito essa indústria é nos ajudar a apagar essas demarcações na areia que o mundo tenta deixar mais profundas – afirmou Del Toro, terceiro mexicano a ganhar o Oscar de direção, seguindo o feito de seus grandes amigos Alfonso Cuarón (com Gravidade, em 2014) e Alejandro González Iñárritu (com Birdman, em 2015, e O Regresso, em 2016).
Falando de representatividade
O Oscar 2018 consolidou um processo de transformação que a Academia colocou em curso em 2015 com o propósito de ampliar a representatividade sexual e racial em seus quadros de votantes. Até então, a entidade era formada por cerca 5,7 mil integrantes (5 mil votantes efetivos), majoritariamente homens brancos acima de 50 anos. Após a convocação de profissionais em diferentes países, conta agora com cerca de 8 mil membros (cerca de 7,3 mil votantes efetivos), com um perfil mais jovem e uma proporção mais equilibrada de mulheres (46%) e não brancos (41%).
E isso já se reflete na seleção de filmes indicados, como os nove desse ano, que de maneiras distintas abordam temas como racismo (Corra!, melhor roteiro original), diversidade sexual (Me Chame pelo seu Nome, melhor roteiro original) e tolerância às diferenças (A Forma da Água). Vale lembrar que essa mudança é também questão de sobrevivência em um mercado de entretenimento cada vez mais concorrido e com a receita de Hollywood dependendo sobremaneira dos mercados internacionais.
Como era previsto, as estatuetas de interpretação tinham endereço certo: além de Frances, ratificaram o favoritismo Gary Oldman, melhor ator por O Destino de uma Nação, e os coadjuvantes Sam Rockwell (Três Anúncios Para um Crime) e Allison Janney (Eu, Tonya).
Ao final de cerimônia, os atores Warren Beatty e Faye Dunaway, protagonistas da gafe da troca dos envelopes do vencedor em 2017 (vexame que não foi culpa deles), ganharam a justa chance de redenção ao chamar Del Toro e a equipe de A Forma da Água ao palco.
Interessante destacar ainda a reverência prestada em diferentes momentos da festa ao filme da Marvel Pantera Negra, que se transformou em fenômeno cultural e comportamental neste começo de ano. Provavelmente, o longa de Ryan Coogler figure no Oscar 2019, quem sabe para derrubar mais algumas barreiras. Jordan Peele, de Corra! não se tornou dessa vez o primeiro realizador negro a ganhar a estatueta de direção – mas consagrou-se como o primeiro a erguer o prêmio de roteiro original.