Não é apenas o tema da hora na novela de maior audiência no Brasil, a nova onda da música pop nacional ou, com a morte da corajosa e pioneira Rogéria, a lembrança do quanto essa discussão segue atiçando nervos e humores. A questão de gênero sexual tem amplitude universal e precisa ser continuamente iluminada em meio às trevas do preconceito e da intolerância.
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E vem do Chile um filme que reforça esse debate em elevado nível artístico. Estreia nesta quinta-feira em Porto Alegre Uma Mulher Fantástica, drama vencedor de três prêmios na edição 2017 do Festival de Berlim: melhor roteiro, menção honrosa do júri ecumênico e troféu Teddy, destinado a produções sobre o universo LGBT. Quem dirige é Sebastian Lelio, realizador reconhecido internacionalmente por Gloria, que valeu a Paulina García, em 2014, o prêmio de melhor atriz no mesmo festival.
Lelio, coautor do roteiro com Gonzalo Maza, apresenta em Uma Mulher Fantástica a jornada cumprida por Marina Vidal, jovem trans que trabalha como garçonete em Santiago. Seu sonho é ser cantora lírica, mas, por enquanto, sobe ao palco de boates para cantar salsa. Marina tem um namorado, Orlando, empresário bem mais velho do que ela. O idílio romântico do casal será interrompido nos primeiros movimentos da trama pela repentina morte de Orlando.
O foco da narrativa é o processo a que se lança Marina para encarar o baque, sobretudo afetivo. Logo surgem para intimidá-la a ex-mulher e o filho do namorado. Exigem que devolva carro, apartamento e cachorro. E que não apareça no velório pra não causar constrangimentos à família. São contatos pontuados por faíscas, entre a raiva e o menosprezo. Não veem nela a jovem mulher abalada, mas o objeto de perversão de um velho safo.
Marina encara ainda contratempos legais diante das circunstâncias da morte de Orlando. Passa por embaraços e provocações de policiais em razão dos documentos, nos quais ainda é Daniel, e pela necessidade de expor o corpo em exames clínicos protocolares. Mas estamos diante de uma personagem determinada a fazer valer seus direitos e, sobretudo, a identidade que assumiu.
E a história de Marina é, de certa forma, também a da atriz que a interpreta, Daniela Vega, na vida real uma cantora lírica trans, aqui estrelando seu segundo longa-metragem. O bom trabalho dramatúrgico de Daniela não é decorrente apenas da natural empatia com sua personagem. A progressiva complexidade das situações que vão se apresentando no caminho de Marina mostram a mão firme de Lelio como diretor.
O tom do melodrama é contido na hora certa, as manifestações mais virulentas de preconceito não avançam até correrem o risco de se mostrarem caricaturais – embora a truculência ensaiada pelos valentões que tentam intimidar Marina seja bastante crível, na postura e no discurso, com a realidade de países como o Brasil, local onde os índices de violência e assassinatos contra gays e transexuais seriam razão de vergonha em uma sociedade civilizada.
Algumas imagens de Uma Mulher Fantástica são simbólicas da combinação da força e da delicadeza de sua história. Em uma, Marina encara uma ventania na rua que a faz vergar o corpo, mas sem desistir de seguir em frente. Em outra, nua na cama, tem um espelho sobre a genitália. Mas não interessa, ao filme e ao espectador, ver ali uma definição física de sexo. A imagem é a do reflexo do ser humano que se vê como deseja ser visto. Uma Mulher Fantástica não faz da questão de gênero seu motor dramático, tampouco o aborda em tom panfletário. A reação de Marina é a mesma de qualquer pessoa que se vê tolhida de seu livre-arbítrio e vítima de injustiça e preconceito. Suas dificuldades e sua luta serem graduadas em razão da identidade sexual indicam o quanto algumas sociedades e mentes precisam avançar até essa questão se tornar irrelevante.
Uma Mulher Fantástica
De Sebastián Lelio.
Drama, Chile/Alemanha, 2017, 104min, 14 anos.
Estreia nesta quinta-feira no Espaço Itaú 2 (17h, 21h40) e no Guion Center 3 (13h45, 17h15, 20h45).