Não são raros os casos em que o cinema preferiu compreender o vilão em vez de exaltar o herói de uma narrativa. Eu, Tonya, filme que estreia nesta quinta-feira (15), e no qual Margot Robbie encarna a patinadora olímpica Tonya Harding, envolvida num caso de agressão a uma competidora rival, também tem essa intenção, mas torna as coisas mais complexas ao adotar um tom sardônico que questiona não só os papéis de heroína e vilã mas o modo como eles foram atribuídos e a própria montagem da narrativa.
Para quem não lembra, o caso foi o seguinte: em janeiro de 1994, a patinadora Nancy Kerrigan, 24 anos, foi encurralada no corredor de um ginásio por um homem que desferiu em sua perna um golpe com um cassetete retrátil. A intenção era quebrar o joelho da atleta, destaque da equipe que os Estados Unidos pretendiam levar aos Jogos de Inverno marcados para aquele ano na Noruega. Nancy foi filmada caída no chão, perguntando repetidamente "por quê?" aos que a socorriam, e aquela se tornou uma das imagens que marcaram a década.
E a coisa assumiu contornos de literatura pulp quando a investigação posterior do FBI identificou o agressor e este confessou haver recebido US$ 6,5 mil de Jeff Gillooly, marido da patinadora rival Tonya Harding, 23 anos. Interrogado, Gillooly deu depoimentos contraditórios que ora inocentavam Tonya por não ter conhecimento do ataque, ora a tornavam a mentora da agressão.
Com o circo sensacionalista da mídia, o caso ganhou ressonância pública a ponto de fincar raízes na cultura pop. Condenada pela agressão e afastada do esporte, Tonya tornou-se nos anos seguintes uma celebridade escandalosa: virou lutadora de boxe e participante de realities. Também já foi tema de canções, como a ambígua Tonya Harding, de Sufjan Stevens, e a satírica Headlilne News, do humorista Weird Al Yankovich.
Com toda essa bagagem, o filme Eu, Tonya parte da inevitável consciência de que, a esta altura, o caso não se resume aos fatos. A narrativa se constrói como um falso documentário em que os três personagens principais, Tonya (Margot Robbie), sua mãe dominadora (Allison Janney) e Gillooly (Sebastian Stan), recontam a história em depoimentos para uma câmera e os eventos são reencenados em flashbacks. É um formato que permite ao filme embaralhar as pistas. A Tonya do presente narra um episódio, Gillooly no presente conta outra versão, e o que vemos na tela durante as cenas no passado já é uma terceira coisa. E por vezes, os atores “quebram a quarta parede” e se dirigem ao espectador para ressaltar que aquilo que se viu ocorreu de modo diverso ("Não existe isso de verdade. Cada um tem a sua própria verdade", desafia Margot Robbie na pele de Tonya).
Robbie, com força na peruca (literalmente) vive uma Tonya que se espraia por um amplo espectro emocional. É barraqueira, rancorosa, arrogante, e também vulnerável e resiliente, ora enfrentando ora sucumbindo ao ambiente em que se formou: as agressões constantes da mãe dominadora e exigente e, mais tarde, do marido idiota e aproveitador (em ambos os casos, abusos que vão da tortura psicológica à brutalidade física).
Mais atlética do que delicada, Tonya foi a primeira patinadora americana a executar um salto com giro triplo durante uma competição (movimento que até hoje poucas patinadoras são aptas a realizar). A perfomance de Robbie, não sem justiça, foi indicada ao Oscar de melhor atriz. Mas um dos problemas do filme está justamente na óbvia reconstrução dessas cenas com uma computação gráfica um tanto deficiente.
A indicação de atriz coadjuvante para Allison Janey se deve, provavelmente, mais à garra da atriz do que à personagem em si, uma figura de papelão mostrada sem praticamente nenhuma característica humana.
No fim das contas, Eu, Tonya não é uma cinebiografia tradicional. Seu mérito está justamente em sua desestruturação, e em como encena, mais do que uma trajetória de vida, uma disputa pelo controle da narrativa dessa trajetória.
Cotação: 3 de 5