Pedra a pedra, prego a prego, Luiz Henrique Fitarelli reconstrói no interior de Garibaldi a memória da imigração italiana no Rio Grande do Sul, a partir de 1875, com a formação das primeiras colônias dos recém-chegados à serra gaúcha. No documentário Pra Ficar na História, em cartaz a partir de quinta-feira (8) em Porto Alegre, Fitarelli apresenta-se como um homem profundamente enraizado na saga e no legado de seus antepassados. Veterinário por formação, lida que o fez conhecer todos os cantos e rostos da região, Fitarelli, 59 anos, vive na terra que foi de seus avôs, agricultor e tanoeiro um, ferreiro o outro. Já na infância começou a colecionar objetos ancestrais. O hábito virou paixão e negócio – já soma mais de 8 mil peças em um galpão – e o lançou na última década em uma missão que muitos vizinhos observam como um devaneio excêntrico: erguer um vilarejo tal qual aqueles formados por ali no final do século 19, com seus casarões de madeira e porões de pedra, roça, bodega, igreja e outros elementos característicos daquele tempo.
Este parque temático já tem forma e nome, Villa Fitarelli, oficialmente chamado Museu Etnográfico da Imigração Italiana. Ainda não está aberto à visitação, mas tem sido cenário para novelas e séries de época da Globo. Turistas poderão fazer essa viagem no tempo em um futuro próximo, quando ali estiverem instalados o restaurante e a vinícola, entre outras benfeitorias planejadas por Fitarelli, que tem no antiquário sua principal atividade hoje.
Quem dirige Pra Ficar na História é Boca Migotto, 41 anos, documentarista, professor do Curso de Realização Audiovisual da Unisinos e especialista em apresentar na tela afetivos painéis memorialísticos. Seu longa-metragem anterior, Filme Sobre um Bom Fim, fez sucesso no circuito local relembrando os anos de ferveção cultural e boemia no mítico bairro homônimo da Capital. Migotto e Fitarelli cruzaram seus caminhos quando o diretor fez Memórias em Sal de Prata (2014), curta sobre dois homens dedicados à preservação de imagens: o fotógrafo de Veranópolis Elígio Parise e o projecionista de Canoas José Carvino da Silva Camillo.
Migotto diz que um filme seu sempre leva a outro. E esse encontro rendeu o curta Pra Ficar na História – Villa Fitarelli, que foi exibido no projeto Histórias Curtas, da RBS TV, em 2015. A Globo Filmes e a GloboNews, coprodutoras do longa com a Epifania Filmes e a Teimoso Filmes e Artes, mostraram interesse na ampliação do trabalho. Foram então registradas novas imagens e entrevistas em Garibaldi e também na Itália, com Fitarelli pesquisando suas origens e registros da imigração italiana no Brasil nas cidades de Lentiai, Marostica, Canal San Bovo e Pádova.
Visão sobre herança colonial mudou ao longo dos anos
Nascido em Carlos Barbosa, Boca Migotto cresceu em meio às narrativas, reais e mitológicas, em torno da imigração italiana na Serra. Em Pra Ficar na História, acompanha seu personagem no processo de montagem desse povoado idealizado. Em sua rotina, Fitarelli busca artefatos antigos que vão de um talher à pesada engrenagem de um velho moinho, de delicadas placas de lata a pesados móveis castigados pelo tempo. Fitarelli, por vezes, compra casas inteiras para remontá-las na sua vila. O que não pode ser restaurado, é recriado por um meticuloso trabalho de carpintaria.
Migotto adiciona um pouco de conflito na história.
– A desconstrução da questão da imigração é algo que me interessa – afirma o diretor. – Existe nessa região quem se orgulha de ser descendente de italiano, de ter acesso a um passaporte europeu, mas que, ao mesmo tempo, coloca abaixo a casa do avô, joga fora fotografias, queima documentos. É uma região rica que mostra pouca preocupação com a preservação da sua história. Esse orgulho começou a aflorar nos anos 1980, quando ganhou força a questão do passaporte, o vinho passou a ser visto como bebida sofisticada, e não aquilo que o nono fazia no porão de casa, e o turismo tornou o que era velho em algo bonito.
Para calibrar essa discussão, Migotto coloca em cena a professora de História Loraine Slomp Giron, especialista no estudo da imigração italiana no Estado, que baliza o trabalho de Fitarelli e a exaltação – e exploração – que a indústria do turismo passou a fazer da colonização. Loraine fala da vida dura que os colonos tiveram no Brasil, lembra que essa herança colonial já foi motivo de vergonha e que os imigrantes chegaram aqui com a mesma ambição de sobrevivência à fome e à pobreza dos haitianos e senegaleses que desembarcam no Brasil nos dias de hoje.
Migotto usa ainda imagens que registrou com seu pai, já falecido, também um interessado na preservação das memórias pessoais e coletivas.
– Meu pai tinha 53 anos quando nasci, foi pai e avô. Falava de coisas que os pais dos meus amigos não sabiam por serem mais jovens. Ele gostava de percorrer essa região conversando com as pessoas e ouvindo suas histórias. Peguei isso dele e faço a mesma coisa com minha câmera.