Por Tânia Cardoso de Cardoso
Doutora em Literatura Brasileira pela UFRGS, especialista em cinema pela Unisinos, curadora da Sala Redenção
"É muito fundo o poço do passado.
Não deveríamos antes dizer que é sem fundo esse poço?"
Thomas Mann, em José e Seus Irmãos
Entre segunda e sexta-feira da próxima semana, a Sala Redenção, da UFRGS, receberá a mostra Sylvio Back 8.0 – Filmes Noutra Margem, em comemoração aos 80 anos do cineasta, poeta, roteirista e produtor catarinense. Filho de imigrantes (pai húngaro e mãe alemã), o que lhe confere um olhar deslocado em relação ao mundo e à História, Back escreveu ensaios sobre o cinema antes de estrear no curta-metragem, em 1964, com As Moradas. O filme já demonstrava seu interesse por temas sociais ao contrapor mausoléus e favelas de Curitiba (onde viveu, vindo de Blumenau), e apontar que os pobres moram pior do que os ricos mortos. Provocador, crítico e acima de tudo questionador, ele define sua obra composta de 12 longas como "filmes noutra margem", já que não busca fundar com estes nenhuma verdade e os considera críticos e livres de qualquer palavra de ordem política e das estéticas de plantão. Para Back, seu cinema é desconfiado.
Lance Maior, o primeiro longa, é o único que tem como pano de fundo uma cidade grande, e que aborda os valores em jogo em uma sociedade urbana. O filme é um ácido retrato da classe média e seu desejo de ascensão social a qualquer preço. Nele, o embate se dá por meio de um jogo de sedução – todos têm ambições e jogam à espera do lance maior. Back passeia sua câmera, focando os personagens (que olham sutilmente para a lente, revelando o dispositivo cinematográfico) para, assim, mostrar o jogo de cada um. Realizado em 1968, poderia ser considerado um retrato de época. Mas não só isso: quase todos os conflitos continuam ecoando em pleno 2017. Ousado para a época, afinal, em 1968, o Brasil estava na fase mais dura da ditadura militar, este que foi o primeiro longa paranaense a projetar-se no país flerta com a Nouvelle Vague francesa e com o cinema tcheco, sobre o qual Back já havia publicado um ensaio.
Aleluia, Gretchen (1976), terceiro longa do diretor, narra a história de uma família de alemães que chega ao Brasil em 1937, em plena II Guerra Mundial. O filme dá conta de várias décadas da família no Brasil e de como o clã vive isolado em uma pousada, considerando o país uma colônia, e seu povo, inferior e preguiçoso, sem jamais se "misturar" de fato. Uma estratégia interessante utilizada por Back é fazer com que os personagens pouco envelheçam, e a passagem do tempo aconteça apenas pelas notícias trazidas pelos poucos visitantes. Isso para mostrar que suas convicções não mudam; só se adaptam.
Aleluia, Gretchen apresenta uma leitura alegórica do Brasil e, muitas vezes, lembra filmes dos realizadores italianos (da Itália fascista de Mussolini), com seus personagens arquetípicos: um democrata, outro liberal, outro fascista e, no caso do Brasil, integralista. Aqui, os personagens encaram a câmera, desafiando o espectador – com exceção daquele que, tratado como escravo, parece não se dar conta da possibilidade que o dispositivo oferece. Aleluia, Gretchen, para nossa surpresa – e imensa tristeza –, também é um filme bastante atual, quando nos damos conta de que o monstro não foi derrotado e que, em pleno século 21, ele volta feroz e com fome, depois, talvez, de se esconder confortavelmente em alguma pousada de campo.
Com temas ficcionais, misturados a fatos históricos – que o realizador chama de "docudrama" –, Back procura desvendar os outros lados da História oficial do Brasil e da América Latina. Reescrita incessante, mas nunca manipulada, pois o que ele realiza não é a adaptação da História a suas convicções. Para o cineasta, o único engajamento é com as possibilidades que a linguagem cinematográfica oferece – e que a realidade não dá conta. Em sua visão, a História é um cadáver a ser exumado – com pesquisas rigorosas, como em República Guarani (1978); do corpo, como em A Guerra dos Pelados (1971); e do espírito, como em O Contestado: Restos Mortais (2010). Mestre na bricolagem de imagens de arquivo, Back se propõe a desfazer mitos e utopias do passado, a exemplo de Guerra do Brasil (1987), Revolução de 30 (1980) e Rádio Auriverde (1981). Também realiza filmes biográficos, como Lost Zweig (2002), sobre o escritor Stefan Zweig. Eis, aí, todos os filmes programados para a mostra.
O "Cacique do Sul", como Sylvio Back foi chamado por Glauber Rocha, estará em Porto Alegre nesta segunda, para a abertura da mostra, que depois segue para Florianópolis e Curitiba.
Sylvio Back 8.0 – Filmes Noutra Margem
> Sessões diárias e gratuitas, desta segunda até sexta-feira, às 16h e às 19h, na Sala Redenção, no Campus Central da UFRGS. Serão exibidos nove longas-metragens do diretor, entre os quais Aleluia, Gretchen, A Guerra dos Pelados, Guerra do Brasil e Lost Zweig. Back estará presente à abertura da mostra, nesta segunda-feira. Outras informações em ufrgs.br/difusaocultural.