Uma sequência é simbólica da proposta da diretora Eliane Caffé em Era o Hotel Cambridge. Durante uma assembleia para discutir a ameaça de despejo do prédio abandonado que ocuparam no centro de São Paulo, os moradores brasileiros do local questionam a participação de imigrantes de diferentes países que ali encontraram abrigo. Um rapaz vindo do Congo fala sobre o paradoxo de o Brasil ser tão receptivo aos expatriados e, ao mesmo tempo, oferecer muito pouco para que os estrangeiros tenham aqui uma vida digna em quesitos como trabalho, moradia e educação. Quem ali pode se considerar refugiado é a questão que surge.
Para apaziguar os ânimos, entra em cena Carmen, espécie de síndica que comanda o local com disciplina de guerrilha. Todos ali, cada um a sua maneira, responde ela, são refugiados da sociedade. Líder da Frente de Luta pela Moradia (FLM), Carmen Silva interpreta a si mesma em Era o Hotel Cambridge, bem realizado híbrido de documentário e ficção em cartaz no CineBancários e no Espaço Itaú.
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O prédio do antigo hotel é de fato uma ocupação, e muitos de seus moradores representam eles próprios junto a atores profissionais como José Dumont e Suely Franco. O genuinamente encenado e o puramente real se amalgamam de tal forma que identificar em que lado da fronteira se está é secundário diante do, digamos, deleite formal e estético.
O foco da realizadora paulista – de Narradores de Javé (2003), estrelado por Dumont – é iluminar um problema social cada vez mais crônico e que tem sua gravidade subestimada por governantes de diferentes esferas: a política pública de habitação. Era o Hotel Cambridge expõe o drama com contundência e sem abrir mão do humor, da ternura e até do romance.
Emerge uma polifonia cultural que coloca sob o mesmo teto brasileiros de norte a sul, congoleses, colombianos e palestinos. Todos eles obrigados a partir para longe de suas bases para encontrar trabalho, paz ou um porto seguro para recomeçar a vida saindo do zero – e, na maioria dos casos, nele permanecendo. Essa babel urbana e contemporânea é habitada por pobres, remediados, indignados e perseverantes organizados numa grande e solidária família.
Com seu filme ganhador de uma menção honrosa no Festival de San Sebastián, na Espanha, e do prêmio do júri popular no Festival do Rio, Eliane Caffé mantém acesa no cinema nacional a discussão já levantada por obras como À Margem do Concreto (2005), de Evaldo Mocarzel, e o curta gaúcho O Teto Sobre Nós, de Bruno Carboni (2015). Era o Hotel Cambridge expõe a chaga brasileira dos sem-teto espelhando-a, de forma harmoniosa e inventiva, na questão global do deslocamento imposto pela violência e pela miséria.
Reais ou inventados, os personagens de Era o Hotel Cambridge compõem uma rica galeria de tipos que lutam pela sobrevivência na selva urbana. Como contraponto, a diretora apresenta, reproduzindo a linguagem furiosa das redes sociais, as opiniões daqueles que os veem como malandros, vagabundos e invasores de bens alheios que merecem ser dali corridos com gás e bala de borracha. O desfecho de ocupações como essa, mostrado no filme, quase sempre atende a esse justiçamento virtual.
ERA O HOTEL CAMBRIDGE
De Eliane Caffé
Docudrama, Brasil, 2016, 99min,12 anos.
Em cartaz no CineBancários (15h, 19h30) e no Espaço Itaú 8 (16h50, 18h30).
Cotação: muito bom