Um dos destaques do Festival Varilux deste ano, Chocolate (2015) conta a extraordinária história de um negro ex-escravo que se tornou celebridade do mundo do entretenimento na França da belle époque. O filme em cartaz na Capital é protagonizado por Omar Sy, ator francês que estrelou sucessos como Intocáveis (2011) e Samba (2014).
Filho de pai senegalês e mãe mauritânia, Sy encarna no longa dirigido por Roschdy Zem o cubano Rafael Padilla (entre 1865 e 1868 – 1917), que se tornou o primeiro artista circense negro da França. A singular trajetória do palhaço Chocolat, dos picadeiros humildes de província até os respeitáveis teatros parisienses, foi catapultada pelo inglês George Footit (1864 – 1921), que formou com Padilla uma dupla cômica de tipo clown branco autoritário e augusto negro sofredor. Quem interpreta Footit é o suíço James Thierrée, ator e artista circense que é neto do diretor e ator inglês Charlie Chaplin – com quem guarda uma impressionante semelhança física.
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Chocolate destaca a peculiar e ambígua relação entre os dois palhaços, permeada por admiração mútua, preconceito racial, diferenças artísticas e ânimos antagônicos – enquanto o introvertido e melancólico Footit mostra a face permanentemente crispada, o brincalhão e espontâneo Chocolat mantém o sorriso sempre aberto.
– Em todo ator cômico, há sempre um lado mais sombrio que me interessa, e Omar não é uma exceção a essa regra. É verdade que ele está sempre irradiando um sorriso, mas, acima disso, ele também está sempre se questionando, sempre tirando suas dúvidas, o que o mostra, também, como alguém vulnerável e frágil – disse o diretor em entrevista a Zero Hora no começo de junho, quando foi ao Rio como convidado do Festival Varilux.
Francês de ascendência marroquina, o ator, cineasta e roteirista Roschdy Zem é mais conhecido pelas atuações em títulos como Um herói do nosso tempo (2005), Dias de glória (2016) e A garota de Mônaco (2008). Chocolate, seu quarto longa na direção, é uma produção caprichada, com uma reconstituição de época detalhista. Apesar da narrativa um tanto convencional demais, Chocolate provoca riso e compaixão ao revelar um personagem tão complexo quanto olvidado e reverenciar a subestimada arte do circo.
Confira abaixo a entrevista com Roschdy Zem:
Chocolate aborda duas questões ainda muito atuais: a discriminação racial e a imigração de refugiados para países europeus. Você já tinha essa intenção desde a criação do roteiro?
A primeira dificuldade era apresentar um personagem que tinha sido esquecido. Então, havia uma excitação minha em conseguir reabilitar um artista. Há o sentimento de cumprir uma missão. Quanto à imigração, tive aquele sentimento de que a realidade nos alcançava enquanto o roteiro era escrito. Parece que a realidade tem mais imaginação do que os próprios autores. Forçosamente, quando se conta a história do único artista negro que existia na França, a gente pensa na população de imigrantes, no racismo e nas pessoas que estão em situação irregular no país. É interessante traçar um paralelo entre uma pessoa como Chocolate no começo do século passado e a situação de um imigrante irregular hoje.
No ano passado, entrevistando Tahar Rahim (ator de filmes como O profeta e Samba), ele disse que não via discriminação quanto a imigrantes ou descendentes de imigrantes no cinema francês. Essa situação era diferente quando você começou sua carreira? Como você vê a representação dessa população nos filmes franceses?
Não sou da mesma geração que Tahar, comecei 20 anos antes dele. Eu pude ver a evolução desse olhar sobre o imigrante, sobretudo o imigrante do norte da África. No cinema dos anos 1980, o imigrante ocupava ainda um lugar muito caricato. Essa imagem evoluiu muito, e eu fui muito beneficiado com isso, porque vivi uma nova onda do cinema francês que mostrava uma geração de filhos de imigrantes do norte da África, com toda a sua complexidade e já bem mais integrada na sociedade francesa. Hoje em dia, atores como Tahar também se beneficiam dessa evolução. Às vezes, o fato de ele ser filho de imigrantes pode lhe dar acesso a todo tipo de papel. Mas não deixa de ser uma luta diária, é preciso ser vigilante porque, em função do que vem acontecendo nos últimos tempos na França e dos atentados, temos que ser mais lúcidos e inteligentes.
Em Chocolate, James Thierrée é tão importante quanto Omar Sy. Como você escolheu esse ator?
Quando escrevi o roteiro, já sabia que o papel de Chocolate seria para o Omar. Depois, tinha que encontrar alguém para fazer seu parceiro, porque eu queria dar bastante importância para Footit. Para mim, ele é um segundo protagonista. Eu tinha toda a liberdade de escolha, a produção não me pediu que escolhesse alguém em especial. Minha escolha do James veio pelo fato de eu conhecer os shows que ele faz, por sua filiação com Chaplin e por seus conhecimentos de circo. Essa abordagem que James tem do circo, quase sagrada, me deu certeza de ele seria o valor agregado do projeto. Por sinal, confiei a ele as coreografias dos números apresentados no filme. James trabalhou durante um mês com Omar para que ele chegasse nesse palhaço. James foi mais do que um ator, foi meu parceiro na criação, pelo menos nesses números. Tive ainda a felicidade de descobrir um grande ator, porque a contribuição de James Thierrée para criar um Footit que fizesse um binômio com Chocolate foi muita sorte.