Um cartaz colado em postes e paredes atrai olhares curiosos de quem caminha pelas ruas da região central de Porto Alegre. No topo, lê-se: "Não fui procurada/Unwanted". Uma figura misteriosa olha seriamente para o leitor do pôster. "Sou uma mulher romanticamente malsucedida", descreve o lambe-lambe. A mensagem, em um estilo que lembra a representação de um foragido, convida o público a enviar "palavras de conforto, histórias de coração partido, conselhos amorosos e propostas afetivas".
À primeira vista, o cartaz pode despertar confusão e curiosidade sobre quem é a mulher e qual, exatamente, é o seu propósito. Seria uma piada? Uma propaganda? Uma tentativa desesperada de conquistar interesses amorosos em meio às dificuldades de se relacionar em um mundo digital? Nenhuma dessas possibilidades se enquadra no objetivo planejado por Marcela Futuro, 25 anos — a mulher por trás dos lambe-lambes, que, na verdade, integram um projeto artístico. A estudante do Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) teve a ideia de ouvir histórias sobre relacionamentos amorosos há cerca de quatro anos.
— Foi depois de eu levar um ghosting (quando uma pessoa "desaparece" de um relacionamento) e vindo de uma sequência enorme de romances malsucedidos. Eu sempre gostei muito de sofrer por amor, acho que dá para se divertir bastante atirada na fossa, eu era mais nova e isso era parte essencial da minha personalidade — conta Marcela.
Assim, a artista preparou os cartazes, comprou um chip de celular, mas, no fim, acabou nunca colando os lambe-lambes, porque amigos levantaram questões sobre segurança e sobre o próprio trabalho, que a fizeram repensá-lo. Com a pandemia, a ideia foi engavetada de vez. Entretanto, no ano passado, Marcela considerou oportuno reativar o projeto, após passar novamente por um momento decisivo em sua vida romântica. Ela, então, comprou um chip novo e, enfim, deu vida a Cely, a personagem do cartaz.
O trabalho está na rua desde novembro de 2022. Desde então, a artista colou lambe-lambes por diversos bairros da Capital: Azenha, Centro Histórico, Bom Fim, Floresta e Moinhos de Vento, além da Avenida Ipiranga. Ao todo, o projeto já recebeu mais de 300 mensagens — as mais diversas possíveis.
— Muita gente curiosa, muita gente disposta a falar sobre si, tem sido bem legal. Já recebi muitas propostas afetivas, gente querendo me conhecer melhor, me chamando para sair. Os que me chamam de linda são meus preferidos — brinca a artista, que está em um relacionamento, mas já recebeu até mesmo um pedido de casamento nas mensagens.
Marcela relatou também alguns retornos desconfiados:
— Também tem os que se mostram preocupados comigo, que perguntam se estou bem da cabeça, e os que acham que é uma ação de marketing. Gente que fala que vai passar, gente que me chama de prostituta.
Imaginário coletivo
O lambe-lambe criado por Marcela é uma mistura de diferentes tipos de comunicações vistas tanto no espaço urbano quanto em filmes ou desenhos animados. A brincadeira vem justamente dos cartazes de wanted (procurado, em tradução livre), utilizados em buscas feitas pela polícia nos Estados Unidos.
— Então "Unwanted/Não fui procurada" vem nesse sentido de que ninguém nunca correu atrás de mim. O que, claro, é um exagero, mas o drama compõe a coisa toda né — explica Marcela.
A arte também é influenciada por propagandas que permeiam o imaginário coletivo dos porto-alegrenses: pôsteres de cartomantes, "trago seu amor em X dias", os da Detetive Aline, entre outros.
Atualmente, a artista adota um visual diferente daquele exibido no cartaz.
— Acho legal a foto do lambe-lambe ser do passado, gosto dessa distância — comenta a artista.
Ela explica que o propósito de colar os cartazes na rua é atingir públicos diversos.
— E coletar histórias de pessoas quaisquer, pensando muito nessa coisa de que a gente, por vezes, acaba superando romances malsucedidos no desabafo, na troca com os outros, preenchendo de forma mais coletiva e social as lacunas deixadas por alguém. A gente fala porque falar é necessário às vezes — complementa.
Há, portanto, conversas que se estendem. Algumas pessoas enviam grandes textos, desabafos, histórias antigas ou sobre relacionamentos que duraram anos. Alguns até mesmo fazem uma cronologia da vida afetiva. Por outro lado, há também mensagens curtas ou diálogos que se encerram rapidamente.
"Eu estou apaixonada pelo antigo melhor amigo do meu ex-namorado", "Na sétima série, eu criei sentimentos pela garota que eu nunca tinha pensado em me envolver", "Minha história: antigamente eu tinha um relacionamento com um rapaz (...) até que eu descobri que ele estava me traindo. Fiquei muito abalada e me rendeu muitas histórias para a minha terapeuta, muitos tratamentos com remédios". Esses são alguns trechos de mensagens que Cely já recebeu.
"Bom, essa foi minha história, não foi algo tão incrível, mas eu queria fazer alguma contribuição para a mulher que queria ouvir histórias de estranhos. Sinceramente, eu adorei isso, muito obrigado, eu nunca achei que faria algo como contar uma história da minha vida para algum estranho, enfim, espero que tenha gostado", agradeceu uma das pessoas, referindo-se ao desabafo como uma experiência. "Até então, eu nunca tinha contado essa história para ninguém, não completa", finalizou.
Ao longo do projeto, Marcela foi descobrindo como responder e acabou ficando suscetível à sua disposição. Algumas trocas são mais descontraídas, e outras, mais sérias. A artista também se sente mais à vontade para falar sobre si mesma com certas pessoas. No começo, suas respostas eram organizadas e padronizadas, mas com o tempo, ela passou a replicar como se estivesse falando com uma amiga. Por vezes, é ainda debochada ou misteriosa. Sendo assim, a aleatoriedade não diz respeito apenas ao público, mas à resposta recebida também.
O projeto se relaciona e brinca ainda com outros aspectos: a questão da identidade após um relacionamento, que envolve uma busca, e a imposição do desespero romântico ao levar um pé na bunda, sobretudo às mulheres. A iniciativa segue a linha de outros trabalhos da artista, que costumam ser interativos. Marcela gosta e adota ainda a tendência de artistas não tradicionais de borrar o limite entre arte e vida.
— Não gosto muito da coisa centralizada, "eu que fiz". A gente que fez isso, isso me interessa bastante — destaca.
Da rua para o museu
A artista foi convidada a exibir uma versão pocket em uma mostra no Museu da UFRGS, que segue até este sábado (6). A exposição acadêmica intitulada ViaRua apresenta trabalhos que dialogam com a rua — como registros, ações ou intervenções urbanas.
— Acho que existe uma problemática em levar para museus e galerias trabalhos que são feitos para a rua, afinal, o que interessa neles geralmente é a interação com a cidade, e não a contemplação — pondera Marcela, que optou por um viés documental, apresentando anonimamente algumas das trocas que surgiram, também em formato de lambe-lambes.
Apesar de um certo estranhamento causado ao ver o projeto na parede de um espaço expositivo, a artista também se interessa pelo jogo entre público (o museu) e privado (as mensagens). Além disso, deixando de lado uma leve timidez, ela aprecia conversar com as pessoas sobre o trabalho.
— Foi interessante, porque percebo que teve um acolhimento bem grande. Acho que é uma coisa bem difícil de as pessoas não se relacionarem. De certa forma, todo mundo já passou por alguma situação do tipo — afirma.
Para a artista, o projeto pode durar algum tempo ou ser reativado periodicamente. Ela inclusive já planeja um encerramento para este primeiro momento. A ideia é promover um evento interativo em julho. Nele, será realizada uma exposição do projeto, trazendo, novamente de forma anônima, os contatos feitos com textos, áudios e registros do processo. Além da mostra, o objetivo é criar um diálogo com a proposta do trabalho de falar sobre o amor, por meio de um speed dating (encontros rápidos, que duram apenas alguns minutos, com diferentes pessoas).
Até lá, o projeto segue funcionando — e os interessados em conversar com Cely ainda podem enviar mensagens para o número (51) 99989-3980 (WhatsApp).