Por Edson Luiz André de Sousa
Psicanalista, um dos organizadores do livro “Imagens do Fora: um Arquivo da Loucura” (Sulina, 2019)
O céu azul profundo convidava a um devaneio nos espaços do fora, mas resolvi entrar em uma espécie de caverna dos sonhos esquecidos, lembrando Werner Herzog, para revisitar, no Museu da UFRGS, a exposição Esta Coisa que Pulsa. Esta mostra reúne obras de 17 artistas da Oficina de Criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro (HPSP). Para minha surpresa, era ali que encontraria ainda mais azul e luz.
Logo na entrada, um grupo de crianças começava uma visita. Resolvi seguir a trilha que se abria inesperadamente para mim, como um fio de Ariadne no do labirinto. Pude perceber nos olhares curiosos das crianças o que ainda não tinha visto na primeira vez que vi a exposição. Foram muitas as surpresas, sobretudo o olhar atento delas aos detalhes dos trabalhos: os papagaios pousando nas costas dos bois em um bordado de Natália Leite; os pés e as mãos vermelhas dos homens no desenho da Cenilda Ribeiro. Meu olhar se ampliou com a curiosidade das crianças. Mas o momento comovente foi quando elas encontraram uma das artistas, Solange Gonçalves Luciano, que expõe suas “vestes falantes”, túnicas coloridas que contam, através de escritos e desenhos, histórias da luta antimanicomial.
Uma pausa na visita. As crianças se sentam em torno da Sol, (como ela se nomeia) e ouvem sua história. Ela pergunta se sabem o que é arte-terapia e explica de forma sensível a função da arte para a vida das pessoas internadas, mencionando o trabalho de Nise da Silveira. Sol insiste em dizer que ali todos são artistas, e seu trabalho nesse momento adquire a dimensão de um mundo abrigo que me faz pensar em Hélio Oiticica. Subitamente tínhamos ali uma ilhota utópica que abria espaço para uma transmissão inédita da história viva de uma experiência bem-sucedida no tratamento do sofrimento psíquico. Uma das crianças então disse que também tem um projeto. A palavra projeto adquiriu ali a força de uma flecha lançada para o futuro. Eles são o futuro, e o espaço da exposição é um convite a imaginar esse horizonte possível.
A Oficina de Criatividade do HPSP é um farol de vida e criação nesses espaços que, antes da reforma psiquiátrica instituída por lei em 2001, eram lugares de esquecimento, exclusão e violência. A exposição apresenta um pequeno recorte do acervo de 200 mil obras. É motivo de celebração o fato de que a oficina ganhou recentemente o estatuto de museu estadual.
São muitas as pulsações nesta exposição, e cada trabalho reafirma a tese da psiquiatra Nise da Silveira quando escreve que “o que cura, fundamentalmente, é o estímulo à criatividade. Ela é indestrutível”. Nise revolucionou o campo da saúde mental com seu trabalho de abrir espaços de linguagem através da arte para pacientes psiquiátricos desde 1944, quando assumiu a direção da seção de terapia ocupacional do Centro Psiquiátrico em Engenho de Dentro (RJ). Em maio de 1952, fundou o Museu de Imagens do Inconsciente e, em 1956, a Casa das Palmeiras, experiência próxima do que hoje são os Centros de Atenção Psicossocial (Caps).
A exposição revela surpresas, pois são muitas as vozes que podemos ali ouvir através das imagens. São trabalhos que nos surpreendem pela riqueza narrativa, e alguns deles, especialmente, pela riqueza formal. Tive a chance de conhecer de perto dois dos artistas e sempre me emociono ao ver seus trabalhos.
Luiz Guides (1922-20210) viveu por cerca de 60 anos no HPSP. Era um homem silencioso na fala e eloquente em suas pinturas. Um artista que sabe o valor do tempo e busca representá-lo em suas pinturas, obras monumentais sobre a transitoriedade e a finitude. Ele monta um série de quadrantes na folha de papel e desenha relógios sem ponteiros em uma espécie de explosão cromática. Depois da folha preenchida, retorna sobre a pintura, recobrindo e apagando em várias camadas seus traços. Assim, o que aparece é um fundo de rumor que tenta vir à superfície como uma raiz inquieta por baixo da terra. Esses relógios sem ponteiros esvaziados de sua função escancaram nossa impossibilidade de reter o tempo. Alguns números aparecem perdidos, soltos na pintura como um rastro de história que ainda vamos precisar contar.
Natália Leite (1942-2022) também viveu por décadas no HPSP, frequentou a oficina desde sua fundação e deixou mais de 14 mil trabalhos. Os desenhos e os bordados que vemos na exposição indicam um esforço de reconstrução de um mundo onde ela pudesse reencontrar sua origem rural. Seus trabalhos me fazem pensar em uma partitura. Algumas obras são organizadas como uma pauta com linhas sobrepostas, talvez na esperança de recuperar com os atritos da forma sons de Santo Ângelo, onde nasceu. São trabalhos em que se escutam araras, bois, porcos, galinhas, chaminés, carroças, a fumaça da chaleira: melodias para enfrentar abismos.
As duas pontuações que faço aqui poderiam ser ampliadas para todos os artistas. Estamos diante de uma constelação de experiências que lançam perguntas e mostram que a arte também é uma forma de enfrentar o sofrimento psíquico e a exclusão. Certamente foi essa pulsação de linguagem e de beleza que as crianças perceberam.
Esta Coisa que Pulsa
No Museu da UFRGS (Osvaldo Aranha, 277, em Porto Alegre), com visitação gratuita até 7 de julho, de segunda a sexta-feira, das 9h às 12h e das 13h às 18h. Curadoria de Barbara Neubarth, Blanca Brites, Mário Saretta, Tatiane Silva e Vanessa Aquino. Outros detalhes da mostra e da programação complementar estão em ufrgs.br/museu e no Instagram, nos perfis @museu.ufrgs e @oficinadecriatividadehpsp.