Por Blanca Brites
Pesquisadora em História da Arte e curadora, professora do Instituto de Artes da UFRGS até 2019
O Hospital Psiquiátrico São Pedro (HPSP), em Porto Alegre, foi fundado em 1884 para receber e tratar doentes mentais de todo Estado, que deveriam ficar distanciados do convívio social. Ao longo de sua história, a instituição chegou a receber 4,8 mil internos. Na segunda metade do século passado, o psiquiatra Isaac Pechansky criou a primeira seção de arte terapia nesse hospital, onde a artista Regina Silveira, reconhecida nacional e internacionalmente, foi estagiária.
Neste mesmo espaço, em 1990, as jovens Barbara Neubarth, Luciana Moro Machado, Rosvita Bauer e Luiza Gutierrez fundaram a Oficina de Criatividade do HPSP, seguindo a linha da psiquiatra Nise da Silveira (1905-1999), que havia criado, em 1952, no Rio de Janeiro, o Museu de Imagens do Inconsciente. Junto com a Oficina de Criatividade surgia o Acervo da Oficina, que preserva cerca de 200 mil peças e documentos. É um valioso patrimônio histórico-cultural do Estado, atravessado pelos campos da psicologia, da arte, da loucura, da memória e dos afetos. Em 2017, o Acervo recebeu o Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), pela salvaguarda desse material, que se constitui, para além do espectro “loucura e arte”, em registros e expressões da vida dos frequentadores da Oficina de Criatividade, muitos deles vivendo há mais de 50 anos no hospital, sem qualquer contato familiar.
Na Oficina de Criatividade, os participantes recebiam tintas, papel, argila, linhas e material para escrita, tendo total liberdade para expressar seus mundos particulares; ali eles encontravam, igualmente, um espaço de sociabilidade. Muitos tornaram-se assíduos frequentadores, sendo possível acompanhar a continuidade de seus trabalhos.
Em 2007, constituiu-se um grupo com a então coordenadora da Oficina, Barbara Neubarth, a professora Tânia Mara Galli Fonseca, do Instituto de Psicologia, e eu, do Instituto de Artes, ambas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), para dar início à organização de quatro coleções que levam o nome de seus autores, a saber: Coleção Cenilda Ribeiro, Coleção Frontino Vieira, Coleção Luiz Guides e Coleção Natália Leite.
O trabalho de Cenilda Ribeiro (1952-1999) é identificado, em grande parte, pelo desenho linear de figuras humanas, que despontam quase sempre com olhar frontal, revelador ou indagador. Outra peculiaridade é o uso de uma escrita própria, acompanhando o desenho, que parece ter ligação direta com o que ela apresenta. Seus desenhos estão muito vinculados a uma narrativa de seu cotidiano como moradora do HPSP. Já Frontino Vieira (1914-1993) se encontrou no uso intenso e variado de cores, criando vibrantes manchas abstratas, embora nunca tenha tido nenhum direcionamento para tal. Sua pincelada resulta de um gesto sinuoso e voluptuoso, que mantém uma força requintada. As pinturas de Luiz Guides (1922-2010) exibem a constância de uma estrutura elaborada pela trama de quadrados, dispostos lado a lado, nos quais ele inseria círculos, toda extensão do papel é preenchida com camadas transparentes de tinta. Muitos desses quadrados contêm números e linhas enigmáticas, que nos levam a pensar em relógios. Natália Leite (1942-2022), por fim, apresentava temas de sua vida no campo, anterior à entrada no HPSP; em sua obra, identificamos animais, casas, igrejas, árvores, figuras humanas. Suas composições, tanto no papel como no bordado, mostram um grafismo bem definido e seguro; contudo, por vezes, suas figuras surgem sobrepostas, mas mantendo o reconhecimento das mesmas.
No momento atual, temos duas comemorações a compartilhar: a primeira é a catalogação de 200 obras das quatro coleções pelo projeto Salvaguarda e Memória – Artistas do Fora na Oficina de Criatividade do HPSP, com recursos do Fundo de Apoio à Cultura do governo do Estado (edital 2021), proposto pelo antropologo Mário Eugênio Saretta Poglio. Para tal, está sendo usado o repositório digital Tainacan, com assistência dos museólogos Elias Machado e professora Vanessa Aquino, mais bolsistas do curso de museologia da UFRGS. Após a catalogação, o público terá acesso virtual a essas obras. A segunda comemoração é a da oficialização, em janeiro deste ano, do Museu Estadual Oficina de Criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro (MEOC-HPSP), que nasce do acervo aqui apresentado e com sede na própria área do HPSP.
Para além de sua potência como arte, esse acervo está denso de vibrações, angústias apaziguadas e dores extravasadas, que vão além do que a imagem-documento pode relatar aos olhares que se dispuserem a admirá-lo sem restrições. Estamos tratando de arte.
O projeto
Salvaguarda e Memória – Artistas do Fora na Oficina de Criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro é uma iniciativa de catalogação de parte dos trabalhos produzidos na Oficina de Criatividade da instituição. Serão contempladas 200 obras, que receberão tratamento de conservação preventiva e serão disponibilizadas para acesso público online, por meio de um repositório desenvolvido para acervos museológicos. O financiamento é via Fundo de Apoio à Cultura – FAC Patrimônio.