Por Cézar Prestes
Gestor cultural, curador da mostra “Tomie Ohtake: Seis Décadas de Pintura”
Sessenta anos de arte falam por Tomie Ohtake. A exposição Tomie Ohtake: Seis Décadas de Pintura, aberta no Instituto Ling, em Porto Alegre, até 25 de fevereiro, revela muito do seu conteúdo interior, do seu olhar para dentro, da sua felicidade em criar. Artista de poucas palavras, Tomie extravasou principalmente com óleo sobre tela suas criações pictóricas convertidas nessas 12 obras agora apresentadas, produzidas entre 1967 e 2013, dois anos antes de sua morte, aos 101 anos. Apenas as duas obras mais recentes foram pintadas com a brevidade do fazer com tinta acrílica.
Percorrer o espaço retangular da galeria do Instituto Ling permite tomar contato com suas pinceladas, gestos que parecem contidos de tão perfeitos, ou propostas supostamente menos controladas. Isso se avaliarmos o resultado da mistura de tintas e suas explosões, como o maior quadro da exposição, uma pintura a óleo de 2x2 metros, de 2002, com o predomínio de tons de azul. O que não se sabe é em que momento a intuitiva Tomie Ohtake dominava o material e o subordinava para dar vazão ao que sentia ou pretendia em seu abstracionismo informal.
Autodidata, experimentava tintas e pinceladas, iluminada pela claraboia do ateliê na casa projetada pelo filho Ruy. O que o arquiteto possivelmente não previra é que a mãe transformaria o ambiente de trabalho em dormitório também. Para lá seguiu sua cama porque a centenária não continha a sua veia criativa. Dormia virada para o jardim e acordava com o sol que entrava pela fachada envidraçada. Ficava ali horas “pintando dentro da cabeça”, antes de começar a rotina diária, conforme o neto Rodrigo Ohtake. Dos cem aos 101 anos, enveredou por uma experiência cromática e de novas pinceladas: pintou obras brancas – nunca em branco, porque carregavam a sua eterna vitalidade. Teve contato com outros artistas e grupos, mas foi dentro de si que alimentou seu abstracionismo singular.
Sua falta de independência na questão de mobilidade, nos últimos tempos, não deteve a sua curiosidade para gerar arte. Mas, no seu processo criativo, a artista prescindia de comentários externos sobre aquela sua criação. Nada do que ouvisse interferiria no resultado final do trabalho. Contudo, apreciava que gostassem de suas obras depois de concluídas: se o espectador ficasse feliz, a autora também ficava. Simples assim. Como sempre, produzia trabalhos sem título, para que a bagagem de cada espectador, ao tomar contato com a obra, a batizasse, sem impor a sua verdade.
Japonesa nascida em Kyoto em 1913, Tomie começou a fazer arte quase aos 50 anos, em parte por uma contingência da vida, ao se ver sem o marido, de quem herdou o sobrenome. Rapidamente fez sucesso, nos anos 1950, e, claro, na década seguinte, antes mesmo de ser naturalizada brasileira. A vizinha do pintor Alfredo Volpi, mãe de Ruy Ohtake e Ricardo Ohtake, hoje ambos arquitetos reconhecidos, desenvolveu e passou sua veia criativa como artista-mãe e avó. Os seus descendentes incluem os netos Elisa Ohtake e Rodrigo Ohtake, arquiteto com obra também de design como o pai, Ruy.
Rodrigo esteve em Porto Alegre neste mês de janeiro para a mesa O Legado Ohtake: Arte, Arquitetura e Design. Foi uma conversa rica e emocionante com o jovem Ohtake, de 38 anos, pela sua convivência com Tomie e Ruy, falecido em 2021. Hoje, os dois escritórios de arquitetura foram fundidos no “jovem escritório de 60 anos de história”, como gosta de dizer Rodrigo. O curioso é que tanto Ruy quanto Tomie tiveram uma vida produtiva dedicada à criação no mesmo período: seis décadas.
Sua experiência e proximidade com a avó, principalmente nos últimos anos de vida, Rodrigo generosamente compartilhou no Instituto Ling durante o evento, conduzido pela jornalista Eleone Prestes e ligado à exposição. O bate-papo está disponível no canal de YouTube do Instituto Ling. Estávamos na companhia do diretor da galeria Almeida & Dale, Carlos Dale, que, junto com o Studio Prestes, trouxe ao Sul a exposição que marca a primeira ação conjunta dessas empresas e o início de fato da parceria.
Nesse dia, a união de forças resultou no privilégio de somar à vizinha exposição as vivências familiares dos Ohtake diante de uma plateia lotada. Até a culinária dominical dos tradicionais encontros em família – no almoço, comida baiana, e, no jantar, japonesa – ajudou a conhecer melhor a “dama do abstracionismo”. Outra curiosidade foi que, mais para o final da vida, Tomie acabou se recolhendo apenas à língua japonesa, e Rodrigo era o seu intérprete e também condutor da cadeira de rodas pelas saídas e viagens, como aquela que fez até Porto Alegre, em 2012.
Foi nessa condição que a encontrei pela última vez, na exposição Pinturas Cegas, na Fundação Iberê Camargo, quando levou às últimas consequências esse olhar para dentro de si para buscar a expressão da arte que a caracteriza. Tomie literalmente pintou uma série inteira às cegas, com os olhos vendados. Assim que secaram, algumas telas já começaram a ser vendidas. Assim, viu as 30 obras produzidas entre 1959 e 1962 pela primeira vez juntas em Porto Alegre, conforme lembra o neto.
Antes dos anos 2000, eu havia exposto em Porto Alegre uma suíte de gravuras, na galeria da qual eu fazia parte como sócio, onde Tomie esteve no vernissage. Era o final de 1987. Depois, a visitei no seu ateliê, em São Paulo. Lembro que havia uma ou mais obras sendo feitas, mas a artista interrompeu o trabalho para conversarmos no estilo Tomie de falar: sem muitas palavras. No ar, havia a certeza de estar vivendo um momento importante, de penetrar no ambiente da criação da pintora, gravadora e escultora. Parecia que todas as suas obras, muito solares, de tonalidades sempre estimulantes ou intrigantes, estavam presentes de alguma maneira. A energia das incursões de Tomie por formas, texturas, alquimia de tintas, luz, espacialidade, alusões à tradição japonesa tomavam a enorme dimensão da artista.
Do mesmo modo que as peças bidimensionais têm sua presença e força inquestionáveis, as formas escultóricas assinadas por Tomie Ohtake, dispostas dentro ou fora de ambientes públicos ou privados, têm algo de espetacular. Isso lembra também a arquitetura de Ruy Ohtake para o conhecido Instituto Tomie Ohtake, em homenagem à mãe. Há um diálogo entre a obra de ambos que está vivo para quem quiser acompanhar. No instituto, há uma sala permanente com obras de Tomie, e, na livraria, é possível comprar o livro sobre a obra da artista. Rodrigo conta do esforço, neste momento, para tornar a casa da avó um local para reverenciar a obra de Tomie Ohtake. Tudo permanece intacto e bem cuidado, “como se Tomie tivesse ido ao banheiro”, conforme Rodrigo.
Tal qual famílias, as criações de Tomie, como costuma ocorrer com as evoluções dos artistas visuais, fluíram em séries. São movimentos alimentados pelo talento, com as obras levadas pela mão do artista até ganharem o mundo. Tomie Ohtake entrega mais do que uma obra consistente e genial que influenciou familiares e outros artistas e criativos. A pintora-gravadora-escultora comprova a possibilidade de fazer arte de grande vitalidade descolada da sua faixa etária, gênero ou qualquer classificação. O exemplo de, aos cem anos, ceder a novas pinceladas na busca de ir além é um legado tão importante quanto as obras criadas ao longo da jornada produtiva de 60 anos. A mulher que, ao chegar no porto de Santos de navio, em 1936, sentiu “o cheiro do amarelo” como sinônimo de Brasil, ensinou a poesia da luz e sombra com a massa da tinta branca ao se despedir desta vida. Obrigado por seu legado, Tomie Ohtake.
Tomie Ohtake: Seis Décadas de Pintura
- São 12 obras a óleo e tinta acrílica sobre tela criadas de 1967 até 2013, dois anos antes da morte da artista, que nasceu em Kyoto, Japão, em 1913, e morreu em 2015 em São Paulo, onde se radicou nos anos 1930, tornando-se uma das principais artistas de seu tempo no Brasil.
- Com curadoria de Cézar Prestes, a exposição é fruto de uma parceria com a Almeida & Dale Galeria de Arte, localizada na capital paulista, e percorre cronologicamente a produção de Tomie Ohtake ao longo de 60 anos.
- No Instituto Ling, que fica na Rua João Caetano, 440, bairro Três Figueiras, em Porto Alegre. Visitação até o dia 25 deste mês, de segunda-feira a sábado, das 10h30 às 20h. Entrada gratuita. Saiba mais em institutoling.org.br.