Por Eduardo Vieira da Cunha
Professor do Programa de Pós-graduação em artes da UFRGS
Cada época da arte determina um espaço que lhe é próprio. A instalação de um lugar específico, e sua caracterização objetiva presente na contemporaneidade, a intimidade entre o individual e o público e a casa da infância de todos nós, aparecem presentes na obra de Rochelle Costi, artista nascida em Caxias do Sul e que morreu no dia 26, vítima de acidente de trânsito, em São Paulo.
A polícia investiga como homicídio culposo o atropelamento na Avenida Europa, próximo ao Museu da Imagem e do Som, casualmente no lugar onde morreu Marcelo Frommer, baterista dos Titãs, também atingido por uma moto em 2001.
Rochelle estava acompanhada por sua irmã Simone. O condutor da motocicleta, Rogério Gois, 40 anos, prestou socorro à vítima e acompanhou durante todo o tempo os familiares no hospital das Clínicas de São Paulo, para onde a artista tinha sido levada ainda com vida. Amigos e familiares de Rochelle, em gesto de grandeza, se mobilizam agora por acharem injusta a atribuição de homicídio culposo investigada no acidente.
Afetividade, aliás, é uma marca de todo o trabalho de Rochelle, e pelos seus lugares de origem. Recentemente, a artista havia voltado a Caxias do Sul para uma exposição em homenagem à casa dos avós, onde nasceu e cresceu, como estivesse completando um ciclo. Nós a conhecemos bem jovem, no início dos anos 1980, quando vinha de um lugar do Interior, teve uma rápida convivência no Instituto de Artes da UFRGS, onde ela distribuiu a generosidade de seu olhar na fotografia. As casas fotografadas por Rochelle passam do vazio ao labirinto. A opção da artista de tornar o espaço da casa, um espaço por natureza privado, íntimo, em público, expressa o caráter inconcluso da vida e revela mais sobre o processo do que à obra pronta. Lembrando Eliane Chiron, a artista parte de suas emoções e de seus sentimentos pessoais, ressentidos na vida privada, ou em lugar privado, e o trabalho de exibir, de ocupar espaços de exposição. Tudo isso para dar forma e completude a essas tensões e incompletudes.
E é somente quando as obras-casas de Rochelle encontram o público, numa espécie de transferência, que surge a sua parte mais íntima, a que faltava ou falta, escondida que estava em suas sombras. Trabalhando em espaços construídos, a artista parte de maquetes em um confronto de tamanhos, escalas, que às vezes parecem desproporcionais pelo gigantismo.
Laços afetivos, delicadezas, memórias, sonhos. Sensações de descompasso. Um mapa afetivo de presenças e ausências. O lar, a casa, o corpo-casa ou a casa-cabeça. Como dizia Lichenstein: “O lar é uma ilusão de inteireza”. Mas também pode ser o lugar da estruturação, principalmente quando vira obra plástica através do olhar objetivo da fotografia encenada.
Confessar é falar, falar é perder. A casa de Rochelle é o lugar do afeto, um lugar onde a artista mesmo ausente agora ocupa o espaço dos acontecimentos e a colocam no papel do personagem ordinário, do transeunte descuidado, de quem cuida, descuida, e habita a casa, mesmo que seja o habitar de uma fábula, um conto, um teatro dramático de realidade.
Em um poema, Borges lembra da casa. Parafraseando Borges, eu diria que “uma mulher se propõe a fotografar seu mundo ao redor. Ao longo dos anos, povoa o espaço com as diversas casas que habitou, e não só as suas, como a dos outros. Pouco antes do final, descobre que esse paciente labirinto traça a imagem do seu próprio rosto”.
Assim era Rochelle Costi, e sua imensa tarefa de inventariar as casas do mundo, tarefa que sabemos, impossível de se completar. O beijo no asfalto, um ato de respeito da tragédia contemporânea de Nelson Rodrigues, aparece aqui como uma metáfora, sinal de delicadeza e de afeto, no limiar da vida e da eternidade do artista.