Por Maria Lúcia Verdi
Poeta e cronista
O livro Percurso do Artista – Teresa Poester – Até que Meus Dedos Sangrem, já lançado em e-book e a ser impresso brevemente, inaugura o selo Arte & Cultura do Departamento de Difusão Cultural e da Editora da UFRGS. O projeto homenageia Teresa como primeira mulher contemplada e celebra o seu encerramento como professora do Instituto de Artes da universidade, aposentada em 2018.
A edição, organizada por Eduardo Veras, registra 42 anos da trajetória artística dessa gaúcha que vive entre a França e o Brasil: o percurso, as estradas, os becos, as veredas que percorre um criador construindo com sangue e sonhos sua obra.
O primor dos textos, das cores e do projeto gráfico fazem do livro, em si, um objeto de arte. As seções iniciais abordam a mostra de mesmo título apresentada pela UFRGS entre 2019 e 2020, que deu a Teresa o Prêmio Açorianos como Artista Destaque, com desenhos, performances e vídeos, todos inéditos.
Abre o livro um texto de Luísa Kiefer sobre a performance Até que Meus Dedos Sangrem. As seções seguintes somam um minucioso portfólio com imagens das obras desde os anos 1980, uma entrevista com a artista, um artigo dela própria sobre a sua atuação com o Grupo Atelier D43 e uma cronologia ilustrada de modo original e afetivo, que recupera momentos marcantes do seu percurso desde o nascimento, em Bagé, em 1954. Os vídeos da mostra, em links e QR codes, encerram a edição.
Começando pela exposição, a linha de tempo da narrativa volta ao passado e mostra o desdobramento das imagens até o trabalho atual na sequência das obras do portfólio.
Teresa nos toca desde seus primeiros desenhos, do início dos anos 1980, em que os personagens são protagonistas que “falam” do cotidiano, detalhes que a artista registra com gestos fortes, atentos a cenas banais, como as de Cá com Meus Sapatos (que trazem Van Gogh à memória), ou os desenhos da Espanha como nas Pinturas Negras, tocante homenagem a Goya.
A partir dos anos 1990, temos as séries Janelas e Paisagens, a explosão de cores, como na pintura mural em cerâmica Paisagem do Pampa, instalada no Centro Cultural Santa Thereza, em Bagé, terra natal da artista, paisagem que a acompanha como signo amoroso e que ela reencontrou onde vive, na França. Janelas e Paisagens, recortes para o outro, o que está atrás, espaço e tempo que passam através.
Nos trabalhos de Teresa Poester, vejo o diálogo com o expressionismo, mas também Cy Twombly (especialmente na série Grades), e, em alguns momentos, mesmo uma releitura muito particular do construtivismo, como na série Janelas. Também vejo o impressionismo revisitado, como na série Jardins de Eragny, dos anos 2000. Além disso, percebo o cinema e a fotografia, e, não por acaso, Teresa também se expressa fotografando e filmando. Vivendo em Eragny, encontrou os ecos das paisagens rurais de sua terra natal; nesse village que acolheu Camille Pissarro e seu ateliê – onde Teresa trabalhou sozinha ou convidando artistas amigos, como a chinesa Dai Zheng e pintores franceses. Esses jardins, transfigurados, mostram-se nos seus desenhos/pinturas, seja a lápis grafite ou técnica mista.
A série Pedras, que começa em 2007, e os desenhos com caneta Bic, que se seguem, são misteriosos, estelares. A instalação feita em 2014 a partir dos desenhos e gravuras da série Anagramas, de fato cria inúmeras possibilidades de leitura, em que o gesto na ocupação do espaço nos remete a uma queda livre em traços hipnotizantes.
A mostra Até que Meus Dedos Sangrem, que dá nome ao livro, é gestada ao longo da sofrida observação, à distância, do impeachment de Dilma Rousseff e da eleição de Jair Bolsonaro, bem como dos desastres de Mariana e Brumadinho, em Minas Gerais. O vermelho sanguíneo da lama e da dor ecológica e política invadia a artista de longe e de perto. Disso resultou a significativa mostra de desenhos vermelhos, cor do nosso pau-brasil e da esperança de mudança. Para essa mostra, Teresa idealizou uma performance, realizada num 7 de setembro, quando 23 artistas vestidos de preto desenharam com a expositora sobre um linóleo de mais de 20 metros quadrados, utilizando-se de canetas Bic vermelhas, instaladas em tubos de PVC como extensores dos braços.
Este livro tão particular, estruturado em edição bilíngue português/francês, como dois livros em um, registra a inquieta obra e o pensamento dessa mulher provocadora, que em trabalhos recentes, como Grito Mudo, me deixa sem ar.
O livro
Percurso do Artista – Teresa Poester – Até que Meus Dedos Sangrem
Eduardo Veras (org.)
Ed. UFRGS, 268 páginas, e-book acessível gratuitamente em lume.ufrgs.br/handle/10183/231719