Ao longo de cinco décadas, o artista plástico Lengil dedicou suas manhãs, tardes e noites ao minucioso trabalho de trazer de volta, de forma quase imaculada, obras de arte danificadas. Dado seu caráter perfeccionista, o sergipano radicado em Porto Alegre nos anos 1960 ficou conhecido dentro e fora do Estado como o “restaurador do impossível”. Principalmente nas décadas de 1990 e 2000, dedicou-se à restauração de arte sacra, recebendo de países como Itália, Argentina e Alemanha esculturas em pedaços e quadros avariados, retornando-os como se estivessem intocados. Hoje, aos 82 anos, aquilo que parecia impossível para o artista começa a se concretizar. Após um acidente que o deixou com sequelas físicas, em junho deste ano, Lengil decidiu descansar as habilidosas mãos e encerrar as atividades no tradicional ateliê localizado no Centro de Porto Alegre. Aos poucos, cataloga e põe à venda as centenas de obras que ainda permanecem à disposição do público. Entre elas, não só aquelas restauradas, mas também as criadas pelo artista.
– A arte para mim significa vida, porque é como um filho, sai de você a ideia, aí você transforma em um símbolo. E é também renascimento, pois, no caso da restauração, trago de volta a felicidade para as pessoas que chegam tristes no meu ateliê com peças quebradas, achando que nunca serão recuperadas. As peças voltam à vida – conta Lengil.
O sergipano faz da reconstrução não só sua profissão, mas também seu estilo de vida. A começar por sua identidade: Lengil na verdade é o nome artístico de Gílson Gonçalves dos Santos, e vem de uma junção de Gílson com o nome de sua falecida esposa, Leni, a quem dedicou muitas de suas criações artísticas. Sua paixão pela arte também foi construída de forma fragmentada. Aos sete anos, morando com os pais na cidade sergipana de Propriá, juntava argila do rio São Francisco para criar bonecos, já que sua família passava por dificuldades financeiras.
Restaurador transita entre estilos e técnicas
Nesta época, ganhou seu primeiro troféu, em um concurso municipal de trabalho manual. Anos mais tarde, ingressou no seminário, onde foi apresentado à restauração de arte sacra, e então decidiu aprimorar os estudos no Rio de Janeiro, onde se formou em Belas Artes. No final da década de 1960, trabalhando em uma empresa de outro ramo, acabou sendo transferido para Porto Alegre, e então decidiu finalmente dedicar-se exclusivamente à paixão pelas artes manuais, fundando seu ateliê na Rua Alberto Bins, que mantém aberto até hoje.
Trago de volta a felicidade para pessoas que chegam tristes ao meu ateliê com peças quebradas, achando que nunca serão recuperadas.
LENGIL
A arte sacra é o campo de maior especialidade do artista e restaurador, mas não o único. Ele transita com conhecimento e afinidade em vários tipos de estilos e técnicas. Biscuit, madeira, óleo sobre tela, gesso, porcelana e cerâmica são apenas alguns delas, que se concretizam em estátuas de santos, querubins, em máscaras tribais, esculturas de animais, entre outros.
Entre os trabalhos que Lengil mais guarda na memória estão a imagem da Nossa Senhora do Caravaggio, feita em madeira policromada e revestida com lâmina de ouro, restaurada mediante pedido especial da Paróquia do Caravaggio, em Farroupilha, além de um abajur de vidro opalina que, quando chegou em seu ateliê, parecia mesmo uma missão impossível:
– A peça veio toda quebrada. O cliente achava que não teria jeito de arrumar, mas conseguimos juntar todos os pedacinhos e transformar a peça em uma nova. Essa é a maior recompensa da minha arte – relembra.
Atualmente, quem cuida das obras de Lengil é sua filha, Patrícia Gonçalves dos Santos Guedes, que disponibiliza o e-mail patigguedes@gmail.com para quem tiver interesse em ver e adquirir as peças.