O prematuro encerramento da exposição Queermuseu — Cartografias da Diferença na Arte Brasileira, quase um mês após sua abertura à visitação pública no Santander Cultural, reacendeu em Porto Alegre o debate entre arte e censura. Sob a alegação de que entre as 270 obras selecionadas para a mostra, entre elas trabalhos assinados por artistas brasileiros de renome internacional, havia ofensas a símbolos católicos e destaque à "pedofilia" e à "zoofilia", pessoas e entidades como o Movimento Brasil Livre (MBL) tomaram de assalto às redes sociais no fim de semana criticando a exposição e seu conteúdo. Houve ainda constrangimentos verbais a visitantes registrados em vídeos. Diante do acirramento dos ânimos, o Santander Cultural anunciou, no domingo, o cancelamento da exposição.
A decisão da instituição repercutiu, ao mesmo tempo, na comemoração daqueles que se sentem ofendidos e na indignação dos que veem no gesto um ato de censura balizado por avaliações equivocadas e descontextualizadas de alguns trabalhos expostos. Apesar de o Brasil ser um país laico e estar sob um regime democrático desde 1985, com a censura prévia oficialmente extinta pela Constituição de 1988, casos como o fechamento da exposição Queermuseu remetam a reações contra personalidades e manifestações artísticas que provocaram polêmica na Capital em diferentes épocas. Veja alguns casos.
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Sartre e Simone
A história foi relembrada dias atrás pela coluna de ZH Almanaque Gaúcho. Em novembro de 1960, Jean-Paul Sartre (1905 — 1980), um dos mais influentes pensadores do século 20, e sua mulher, a escritora Simone de Beauvoir (1908 — 1986) passaram pelo Brasil visitando universidades e fazendo palestras em diferentes Estados. A Universidade Federal do Rio Grande do Sul propôs a seu Conselho Universitário convidar o casal para vir à Capital. Mas um dos membros do Conselho, o líder católico, professor e futuro senador Armando Câmara, teve voto decisivo: "'Se esta rameira (referindo-se a Simone) entrar nesta universidade, eu sairei pela mesma porta para nunca mais aqui voltar". Câmara ficou.
Roda Viva
Na fachada do antigo Teatro Leopoldina, na Avenida Independência, as pichações "Fora comunistas", "Chega de pornografia", "Abaixo a imoralidade" indicavam que as três apresentações da peça Roda Viva agendadas para Porto Alegre em outubro de 1968 se dariam sob o mesmo clima tenso e violento que marcara suas sessões no centro do país. Escrita por Chico Buarque e dirigida por José Celso Martinez Corrêa, o espetáculo contava a história de um cantor diante das aflições decorrentes da busca pelo sucesso, em performance que combinava imagens sacras e cenas de sexo. No dia 3 de outubro, assim que foi encerrada a sessão no Teatro Leopoldina — as três noites previstas estavam com ingressos esgotados —, a atriz Elizabeth Gasper e o músico Zelão foram sequestrados e levados até o Parque Saint-Hilaire, em Viamão, por integrantes locais do Comando de Caça aos Comunistas (CCC), grupo paramilitar ligado ao governo. Foi o desdobramento de uma noite que começou com a distribuição de panfletos contra a peça na porta do teatro e seguiu-se com o espancamento de músicos. Após a intimidação, Elizabeth e Zelão foram libertados com ordem de deixar a cidade. Porto Alegre assistiu à ultima sessão do espetáculo imediatamente censurado.
Godard proibidão
Em 1986, o Brasil acompanhou uma polêmica que relembrava os tempos ainda recentes da censura imposta pela ditadura militar. O presidente José Sarney, cedendo à pressão da Igreja e de grupos católicos, proibiu a exibição de Je vous Salue, Marie, filme francês em que o celebrado diretor Jean-Luc Godard apresentava uma livre versão sobre a concepção de Jesus Cristo. No dia 13 de março, foi realizada em Porto Alegre uma concorrida sessão do longa na Faculdade de Arquitetura da UFRGS, a partir de uma surrada cópia em VHS. Para impedir a ação da polícia, apenas na hora da exibição foi informada a atração, e um esquema entre os estudantes foi montado para manter a fita em segurança em caso de intervenção. A sessão foi precedida de um ato de protesto na Esquina Democrática, com atores do grupo de teatro Ói Nóis Aqui Traveiz representando com os papéis da Virgem Maria e de Sarney. Je vous Salue, Marie, após sua liberação, entraria em cartaz na Capital apenas em 14 de julho de 1992.
Scorsese, o herege
A Última Tentação de Cristo, filme de Martin Scorsese, entrou em cartaz em Porto Alegre em 17 de novembro de 1988. O longa era consagrado pela crítica internacional e atacado por setores da Igreja descontentes com a projeção de um Jesus Cristo casado e pai de família. Os responsáveis pelos cinemas São João e Baltimore 2 contrataram seguranças e pediram apoio da Brigada Militar para prevenir manifestações e atos de vandalismo. Apesar de telefonemas com ameaças de bomba e protestos de grupos religiosos nas calçadas, empunhando cartazes como "Scorsese herege", as sessões transcorreram sem maiores incidentes.
Polêmica à espanhola
Em maio de 1998, o artista plástico espanhol Pablo Admetlla apresentou na galeria Iberê Camargo da Usina do Gasômetro a exposição Visceras y Sentimientos. Entre os trabalhos estavam quatro fotografias que reproduziam cenas de um vídeo de sexo explícito visualmente tratadas com o tom azul. O então vereador Luiz Braz (PTB) considerou esse registro "pornográfico" e acionou o Ministério Público, quando a exposição estava em cartaz havia quase um mês — no livro de visitas, com 1,7 mil assinaturas, destacavam os organizadores, não havia nenhuma menção às fotos. Diante da ameaça de censura, artistas participaram de um ato de repúdio exaltando a liberdade de expressão. Entre eles estava Danúbio Gonçalves, que lembrou em sua fala que o mestre espanhol Pablo Picasso tinha mais de 80 anos quando produziu uma série de gravuras eróticas. O MP determinou que o acesso de crianças e adolescentes à exposição se desse apenas com acompanhemento de pais ou responsáveis.