No mercado de arte da Porto Alegre dos anos 1970, ainda emergente, havia lugar garantido para pintura, gravura e escultura. Mas a fotografia era uma estranha nas galerias e nos museus. Um grupo de jovens artistas estava prestes a mudar isso e entrar para a história da arte brasileira. Eram Carlos Asp, Carlos Pasquetti, Clóvis Dariano, Mara Alvares, Telmo Lanes e Vera Chaves Barcellos. Atendiam pelo nome Nervo Óptico.
O período de dezembro de 1976 a setembro de 1978 bastou para que o coletivo revolucionasse o circuito das artes, trabalhando com super-8, performance e, especialmente, fotografia. Os integrantes não se colocavam como fotógrafos, mas artistas tomando a fotografia como ponto de partida para intervenções, fotomontagens, registros de performance e outros. Em abril, completam-se 40 anos do seu trabalho de maior repercussão, o cartezete Nervo Óptico. A Fundação Vera Chaves Barcellos aproveita a data para inaugurar, neste sábado, a exposição Nervo Óptico: 40 Anos.
O coletivo foi gestado em encontros de jovens artistas, muitos egressos do Instituto de Artes da UFRGS. A mais experiente era Vera Chaves Barcellos, que ouviu falar do "movimento" e passou a frequentar as reuniões:
– Foi nascendo um espírito crítico em relação às políticas culturais do Estado, e decidimos fazer um manifesto. Muitos ficaram com medo de ofender o mercado e não assinaram. A gente fala que não era contra o mercado, mas contra que o mercado dirigisse a valorização do objeto de arte.
Oito artistas assinaram o texto e promoveram, em dezembro de 1976, a exposição Atividades Continuadas, no Museu de Arte do Rio Grande do Sul (Margs).
– Como era uma época em que havia certo silêncio em relação a qualquer coisa que se pudesse reclamar porque ainda estávamos na ditadura, houve essa acolhida grande por uma massa da cultura, e os debates foram acirrados e entusiasmados – recorda Vera.
Em abril de 1977, reduzido aos seis integrantes definitivos, o coletivo lançou o Nervo Óptico, descrito como "uma publicação aberta à divulgação de novas poéticas visuais". Cerca de mil exemplares foram impressos e distribuídos gratuitamente. Até 1978, outras 12 edições mensais seriam publicadas, apresentando geralmente o trabalho fotográfico de um artista do grupo ou convidado. Eram folhas impressas em preto e branco, o contrário do que se entendia como uma obra "vendável" na época e por isso acabavam por questionar o próprio conceito de arte.
– De certa maneira, a gente não queria pintar. Quase todos da minha geração iniciaram a carreira pensando na pintura como meio, mas acho que a fotografia objetivou mais o olhar, nos deixou mais conscientes do mundo ao redor –recorda a artista.
Os cartazetes viajaram o mundo – foram feitos para isso. O grupo assumiu o nome da publicação e teve dois anos de intercâmbio intenso. Reuniam-se no antigo estúdio de Clóvis Dariano, na Rua Garibaldi, onde faziam experiências com fotografia e super-8, uns servindo de modelos para os outros.
– Um tipo de produção que pudesse ser distribuída quebrava a ideia da arte entronizada em um museu, da peça única que você tem que ter uma relação de respeito e quase de adoração. Era uma proposta de aproximar, discutir e estabelecer com o público um outro tipo de contato com a arte – interpreta a curadora da exposição Nervo Óptico: 40 Anos, Ana Albani, que pesquisa o grupo desde o início dos anos 1990.
A ruptura não foi bem recebida por todos. Uma crítica incisiva partiu do artista Danúbio Gonçalves. Em 1978, ele escreveu no Boletim do Margs que a fotografia seria um recurso usado por artistas que não dominavam o desenho. Atacou diretamente o Nervo Óptico, chamando-o de "sarampo" das artes, já que a doença costuma acometer crianças e durar pouco tempo.
O grupo não demorou a responder. Enviou para o Atelier Livre, instituição da qual Danúbio era diretor, uma fotografia de seus integrantes cobertos de pintinhas vermelhas (a obra reproduzida acima). Esse senso de humor era uma marca do Nervo Óptico e uma estratégia incomum nas obras da época, segundo a curadora. Em 1978, o Nervo Óptico fez sua última exposição e decidiu encerrar a publicação dos cartazetes, que hoje, ironicamente, são itens valiosos em acervos de museus.
Em vídeo, artista Vera Chaves Barcellos e curadora Ana Albani falam do grupo e da exposição:
Experiências fotográficas assumem o protagonismo
Depois de passar pelo Centro Cultural São Paulo, a exposição Nervo Óptico: 40 Anos será inaugurada sábado na Sala dos Pomares da Fundação Vera Chaves Barcellos (FVCB), em Viamão. Com exceção de alguns documentos – como fotos de bastidores e estudos para obras –, o catálogo segue o mesmo da mostra de São Paulo. O que muda é a montagem, adaptada ao novo espaço.
Estão reunidas mais de 70 obras das coleções Fundação Vera Chaves Barcellos, Pinacoteca Barão de Santo Ângelo, Margs, MACRS, Bolsa de Arte e dos próprios autores. É uma chance de ver todos os cartazetes Nervo Óptico, já que atualmente alguns têm o status de raridade, e as obras que os estamparam em tamanho ampliado.
– Trata-se de uma reunião de trabalhos que poderá não acontecer tão facilmente. E o que se observa é a contemporaneidade das imagens, em termos estéticos, e das questões que os trabalhos propõem: esse jogo de performance, de corpo, de espaço-natureza – analisa a curadora Ana Albani.
A mostra enfatiza o experimentalismo do coletivo, o caráter lúdico das obras e o protagonismo da fotografia (ao invés de suportes então hegemônicos, como a pintura e a escultura). São buscas que garantiram ao coletivo um lugar cativo na história da arte brasileira.
– Não se tem notícia de um grupo que tenha investido tanto no uso da fotografia como arte contemporânea no país – afirma a curadora.
O coletivo foi tema de Ana Albani em seu mestrado, entre 1991 e 1994, quando a bibliografia sobre o assunto era inexistente. Vinte anos depois, multiplicam-se os trabalhos acadêmicos que abordam o grupo. Autora de Espaço N.O., Nervo Óptico (Funarte, 2004), a professora promete lançar um livro maior sobre o grupo em 2018, "para fechar os 40 anos de comemorações".
Antecedentes
A maioria dos trabalhos da mostra foi desenvolvida entre 1976 e 1978. Mas há também obras anteriores que apresentam as pesquisas individuais dos integrantes do grupo. Um exemplo é a série Testartes, de 1974, um jogo de imagens e indagações ao espectador proposto por Vera Chaves Barcellos. Antes de identificarem-se como Nervo Óptico, alguns artistas inclusive já colaboravam, como mostra Triacantho, de 1975, assinada por Carlos Pasquetti, Mara Alvares, Clovis Dariano e Fernanda Cony, que mistura performance, fotografia e desenho.
Jogo de imagens
A intervenção e a apropriação de imagens eram recursos bem usados. É o caso de Paisagem sobre Paisagem (1977), em que Clóvis Dariano cria uma ilusão ao registrar a sobreposição de duas fotografias do mesmo assunto, e de Golpe de Vista no Pão de Açucar (1977), em que Telmo Lanes desenha um varal sobre uma foto.
Performance e fotografia
A combinação de performance e fotografia é uma marca do Nervo Óptico. Está presente, por exemplo, em Adansônia (1977), na qual Mara Alvares fotografa dançarinos em interação com árvores, e na série On Ice (1978), registro que Vera Chaves Barcellos faz da performance de Flavio Pons e Cláudio Goulart na superfície congelada de um lago em Amsterdã. Uma das obras mais curiosas e bem-humoradas é Íntimo Exterior (1978): Telmo Lanes deixou uma unha crescer por meses, cortou-a e a fotografou em diferentes contextos.
Documentos
Duas salas da Fundação Vera Chaves Barcellos exibem documentos como catálogos e convites de exposições do Nervo Óptico, além de obras de dois artistas, Romanita Disconzi e Jesus Escobar. A dupla assinou o manifesto contra as políticas do mercado de arte lançado pelo coletivo em dezembro de 1976, mas não seguiu trabalhando com o grupo. Na mesma sala das obras, é possível sentar e assistir ao documentário Nervo Óptico: Procura-se um Novo Olho, de Karine Emerich e Hopi Chapman.
Nervo Óptico: 40 anos
Abertura sábado (1º de abril), das 11h às 17h, com visitação de 1° de abril a 22 de julho, de segunda a sexta-feira, das 14h às 17h30min.
Sala dos Pomares, na Fundação Vera Chaves Barcellos (Av. Senador Salgado Filho, 8.450, em Viamão).
Transporte: no dia da abertura, a fundação disponibiliza transporte gratuito de ida e volta ao centro de Porto Alegre, com saída em dois horários: às 11h e às 14h, em frente ao Theatro São Pedro (Praça da Matriz, s/nº). É necessária inscrição prévia pelos telefones (51) 3228-1445 e (51) 98498-5994 ou pelo e-mail info@fvcb.com.
Preste atenção: durante a abertura, também será lançado o livro Fotografia & Poesia: Afinidades Eletivas (Ubu Editora), de Adolfo Montejo Navas.