Reconhecido como um dos importantes nomes da chamada geração moderna das artes visuais do Rio Grande do Sul no século 20, Yeddo Titze morreu aos 81 anos de forma silenciosa, sem as devidas homenagens, protagonizando um triste epitáfio.
Depois de sofrer um atropelamento envolvendo um motociclista no dia 29 de maio, na Avenida Farrapos, o artista e ex-professor universitário foi levado ferido ao Hospital de Pronto Socorro de Porto Alegre (HPS) e lá ficou internado até 8 de junho, quando não resistiu ao coma e faleceu. Seu corpo foi então encaminhado ao Instituto Médico Legal (IML), onde, passados oito dias, ainda permanece guardado em uma câmara fria.
A demora para o funeral se deve ao fato de que a liberação do corpo só pode ocorrer após autorização de familiares em primeiro grau. Yeddo não tinha filhos e vivia sozinho em Porto Alegre há mais de 20 anos. Mantinha contato mais próximo e frequente apenas com um amigo, Paulo Giovani Santos de Campos, 49 anos, que fazia as vezes de cuidador.
Desde a morte do artista, Campos tem lidado com a burocracia da justiça. Acabou contratando duas advogadas para conseguir retirar o corpo de Titze do IML. Contudo, até o momento, ainda não obteve autorização legal. A preocupação é que, caso isso não ocorra no prazo de 15 dias – ou seja, até o dia 23 –, o artista pode ser enterrado como indigente.
– Por isso, estamos esperando com urgência máxima a decisão – diz a advogada Simone Regina Trindade.
A situação acabou mobilizando amigos e antigos alunos de Titze, que se somaram aos esforços de Campos e das advogadas para buscar um desfecho digno ao artista que em vida foi reconhecido pela qualidade de sua pintura e como um dos pioneiros e maiores divulgadores da arte têxtil no Estado.
Pessoas próximas contam que há cinco anos Titze teria decidido se recolher do convívio social. Sua última aparição pública como artista foi em 2011, quando ganhou em Santa Maria, no Centro Universitário Franciscano (Unifra), uma exposição em sua homenagem – Titze foi professor da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) entre 1964 e 1980.
– Depois, não o vi mais. Ele ficou recluso por vontade própria – conta Rita Cacia da Rocha Machado, que foi aluna de Titze no Centro de Artes e Letras (CAL) da UFSM. – Yeddo pintava, desenhava, fazia tapeçaria. Sempre foi uma pessoa calada e discreta. A gente percebia que isso não era uma ausência dele, mas envolvimento com o processo interior de criação, ele vivia para isso. Em aula, era um mestre elegante e afetuoso no trato. Lembro que, se fôssemos procurá-lo, nunca estava na sala dos professores, mas no ateliê.
O artista Flamarion Trevisan, que também foi aluno de Titze na UFSM, lembra de como era incentivador dos jovens alunos.
– Era um sujeito que entendia muito de arte. Ele foi o primeiro e único professor que tive na universidade que sentou no fio da calçada para conversar sobre arte e me estimular a ser artista. Esse impasse (sobre a liberação do corpo) é revoltante e indigno com a importância dele para a arte gaúcha – conta Trevisan.
Amigo de Titze desde o fim dos anos 1980, Paulo Giovani Santos de Campos saía semanalmente de São Leopoldo para visitá-lo em Porto Alegre. Ele conta que, após a morte da mãe nos anos 1990, o artista entrou em um período de depressão. E que, mesmo com a aposentadoria de professor universitário, não conseguia pagar as dívidas que contraiu em empréstimos feitos durante o tratamento dela.
– Ele ganhava uns R$ 6 mil de aposentaria, pelo que sei – conta Campos. – Mas as dívidas se tornaram uma bola de neve nesses cerca de 20 anos desde a morte da mãe. E o Yeddo também aumentou as dívidas com empréstimos feitos para comprar material de pintura.
Campos confirma o isolamento a que o artista se submeteu por opção nos últimos anos. E que buscava se manter afastado do convívio com outras pessoas:
– Ele ia à missa todo dia, caminhava pelo centro, almoçava no Center Shop (no shopping popular da Voluntários da Pátria). Sempre foi ativo e andava bastante pela rua. Ele passava as tardes pelo Centro e costumava circular pela Praça da Alfândega para ver as mostras no Margs e no Santander Cultural. Mas não ia mais de jeito nenhum a aberturas de exposições.
Até a metade dos anos 1990, Titze vivia com a mãe em um apartamento na Rua dos Andradas, em frente à atual Casa de Cultura Mario Quintana. Depois da morte dela, mudou-se para a Avenida João Pessoa até que decidiu viver em hotéis. Foi aí que se transferiu para Santana do Livramento, sua cidade-natal, mas não se adaptou e logo retornou à Capital. Morou então na rua São Carlos, no Bairro Floresta, e finalmente no apartamento de um quarto que alugava na Avenida Farrapos 1.025, onde viveu os últimos 10 anos.
– O apartamento está entupido de obras de arte dele – conta Campos. – Ele produzia muito, mas tinha parado de pintar no meio do ano passado. Estava meio desiludido com a arte também, que era a única coisa à qual nunca se afastou. Na exposição que fizeram para ele em Santa Maria em 2011, ele praticamente se obrigou a ir porque a homenagem partia de antigos amigos e colegas.
Um dos motivos da desilusão que fizeram Titze interromper a produção, acredita Campos, foi o sumiço de uma série de obras e materiais de trabalho que ele guardava em um depósito fora de casa. Depois de ficar dois meses sem pagar o aluguel do espaço, foi ao local e encontrou um novo dono, que lhe disse que não havia mais nada registrado em seu nome.
– Isso o deixou muito mal, arrasado, totalmente desiludido – conta o amigo-cuidador.
Campos falou pela última vez com Titze no sábado, 28 de maio. Combinou que telefonaria novamente na segunda ou terça-feira para combinar a visita da semana. Ele não atendeu. No dia 1º, quarta-feira, foi ao prédio de Titze e soube que ele havia sido atropelado e estava internado no HPS. Campos conta que, mesmo estando em coma, os médicos acreditavam que ele se recuperaria, mas que ficaria mudo e paralítico.
O pedido legal para a liberação do corpo foi feito à Defensoria Pública no dia 8 e encaminhado ao judiciário no dia 13. Porém, foi indeferido porque Campos não era familiar de Titze. Assumido pelas advogadas Simone Regina Trindade e Suélen Cristine Silva Rolim, o processo então foi enviado à Vara de Registros Públicos. De lá para cá, está tramitando nas instâncias judiciárias.
Nesta quinta-feira (16/6), o processo foi encaminhado ao Ministério Público novamente, que deu parecer favorável à liberação do corpo, conforme informações do MP. No entanto, não houve o deferimento do pedido de liberação do corpo e registro do óbito pelo juiz Antonio C. A. Nascimento e Silva, da Vara de Registros Públicos do Foro Central de Porto Alegre, o qual determinou mais medidas a serem cumpridas. Contatado por ZH, o juiz informou, por meio da assessoria de seu gabinete, que o processo corre em segredo de justiça e que está seguindo o trâmite normal.
Titze é reconhecido como pintor e tapeceiro e deu aulas na UFSM e na UFRGS
Com uma trajetória marcada pelas atividades de artista e professor, Yeddo Titze fez história na arte gaúcha como um dos pioneiros da tapeçaria, tornando-se reconhecido nacionalmente. Essa contribuição acabou fazendo do Centro de Artes e Letras (CAL) da UFSM, onde deu aulas entre 1964 e 1980, uma referência da arte têxtil.
– A importância de sua tapeçaria é indiscutível. Por isso, sua obra deve ser divulgada e reconhecida – diz a artista Zoravia Bettiol, outro nome de destaque da tapeçaria no Estado.
Mas Titze foi mais do que tapeceiro. Dedicou a maior parte de sua vida à pintura, sendo apontado como um dos primeiros a explorar ou flertar com a abstração no Rio Grande do Sul ao lado de artistas como Rubens Cabral, Nelson Wiegert e Carlos Petrucci. Era um passo ousado, uma vez que a pintura abstrata foi repelida pelo então cenário conservador do Estado, que via nela a invasão de uma tendência internacional descomprometida politicamente e capaz de corromper os valores da arte figurativa vigente e de viés regionalista.
Nascido em 1935, em Santana do Livramento, Titze estudou no Instituto de Belas Artes de Porto Alegre, hoje Instituto de Artes da UFRGS, onde foi aluno de mestres como Ado Malagoli, fundador do Museu de Arte do Rio Grande do Sul (Margs), e integrou o grupo Triângulo, de vertente modernista. A exemplo de muitos artistas gaúchos de sua geração que viajaram à Europa para estudar, Titze viveu entre 1960 e 62 na França, onde teve lições com André Lhote e Marcel Gromaire. No final dessa mesma década, voltaria a Paris, desta vez para estudar tapeçaria.
Titze participou de exposições e salões no Brasil e fora do país. Foi responsável pelo Setor de Artes Plásticas na Funarte em Brasília de 1976 a 1979. E, depois do período de aulas na UFSM, mudou-se para Porto Alegre, onde voltou ao Instituto de Artes da UFRGS como professor, dando aulas de pintura entre 1980 e 1993. Suas obras são encontradas em diversas coleções do país. No Estado, está representado no acervo do Margs. Em 2011, no mesmo ano em que foi homenageado com exposição em Santa Maria, recebeu em Porto Alegre o Prêmio Especial do Júri do Prêmio Açorianos de Artes Plásticas.