Uma das lembranças mais remotas de infância é a tarde em que fui, pela primeira vez, ao Hipódromo do Cristal. Turfista inveterado, meu pai – o jornalista Luiz Osório, o Barão – sugeriu que eu desse um palpite. Não recordo o nome do cavalo (seria Fox Trotter?), lembro que era negro como a noite, trotava com elegância e tinha bordado o número 5 na cela. Devia ser um azarão, a julgar pela reação de surpresa do pai ao vê-lo cruzar a linha de chegada à frente dos demais. Isso não me fez um apostador, mas transformou o “5” em meu número de sorte, além de estimular frequentes idas ao “prado”, como se dizia antigamente.
Naquele dia, ao me descolar do chão pela escada rolante da passarela de acesso ao pavilhão social, com vista para o Guaíba, senti-me impactado pela estrutura de vidro e metal, mas não tinha ideia de que estava adentrando o primeiro exemplar da arquitetura modernista no Estado. “O caminho, todo envidraçado, permite que se desfrute desde o alto a arquitetura e o paisagismo do conjunto, em um passeio preparatório e majestoso ao ingresso no mundo sofisticado do turfe”, descreve Flávio Kiefer no livro Jockey Club: Histórias de Porto Alegre.
O terreno no bairro Cristal tinha sido cedido pelo poder público em troca da área do antigo Hipódromo do Moinhos de Vento (onde, hoje, está o Parcão). Foi preciso aterrar parte do local para concluir a obra, inaugurada em novembro de 1959, não sem um contratempo – na estreia, o pavilhão social estava interditado por causa de um incêndio, justamente na escada rolante. Antes, os jovens arquitetos Lúcio Costa e Oscar Niemeyer (principais nomes da arquitetura modernista no Brasil) haviam feito projetos para autarquias e departamentos do governo federal em Porto Alegre, mas nenhum deles saíra do papel.
O Hipódromo do Cristal é obra do uruguaio Román Fresnedo Siri, que tem no currículo também o Hipódromo de Maroñas, de Montevidéu, e a sede da Organização Pan-Americana de Saúde, em Washington D.C. Em Porto Alegre, projetou ainda o Edifício Esplanada, na Avenida Independência. É verdade que, dos seis pavilhões previstos, apenas a metade foi executada, conforme o Guia de Arquitetura de Porto Alegre, de Rodrigo Poltosi e Vladimir Roman. Mas as três tribunas construídas (tombadas pelo patrimônio histórico do município em 2005), embora com peculiaridades e públicos distintos – social (para associados), popular (público em geral) e paddock (profissionais de imprensa e Jockey Club) –, têm elementos comuns, que identificam um sentido de conjunto. Entre eles, de acordo com Poltosi e Roman, estão os dois níveis das arquibancadas inclinadas e a grande cobertura em balanço, “executada em vigas protendidas contrabalançadas por tirantes, que permitem uma visão desimpedida da pista de corridas”. Outro destaque são os quebra-sóis metálicos, que protegem as fachadas como uma “segunda pele” do edifício, jamais experimentados antes no Brasil.
Hoje, distante do apogeu devido à perda de glamour do turfe, o hipódromo revela o contraste da época que vivemos. De um lado, resiste como um ícone da modernidade na paisagem da zona sul da cidade. De outro, expõe a voracidade com que os símbolos contemporâneos são devorados pelo tempo. Seja como for, “não tivesse sido um estrangeiro projetando em Porto Alegre, nos anos 1950, esse projeto não figuraria em lugar de honra nos catálogos da arquitetura brasileira?”, pergunta Flávio Kiefer.