O texto a seguir é uma colaboração do historiador da Unisinos Sandro Blume, o qual realizou o trabalho intitulado Morte e Morrer nas Colônias Alemãs do Rio Grande do Sul – Recortes do cotidiano.
O Dia de Finados homenageia a memória de quem já partiu e nos lembra da única certeza que temos em vida: a morte. Nessa data ocorre, tradicionalmente, romaria aos cemitérios. Em muito, pela crença dos vivos de que os mortos partiram dessa para melhor, obtendo passagem para um plano mais alto da evolução. Entretanto, esse culto à ancestralidade, como define o professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, de Portugal, Fernando Catroga, nas últimas décadas vem sendo marcado por uma mudança nos ritos envolvendo a morte e o Dia de Finados – também chamado de Dia dos Mortos ou dos Fiéis Defuntos em culturas latinas e europeias.
Analisando diferentes aspectos sobre a morte e o morrer nas colônias alemãs, percebe-se primeiramente o caráter pedagógico e catequético das representações do luto na vida dos imigrantes, católicos ou evangélico-luteranos. O fato de ser enterrado em uma necrópole já era um bom indício do legado daquele que havia morrido. Não ser sepultado em cemitério trazia uma carga simbólica de não pertencimento ao reino de Deus, era sinônimo de transgressão profana e de anomalia social nas colônias alemãs.
Esse conteúdo moralizador era materializado nas sepulturas daqueles que cumpriram com seus deveres sociais e religiosos. O impedimento do enterramento, como no caso dos “mucker”, aqueles que aderiram ao movimento messiânico (1868-1874), no Morro do Ferrabrás, sob a liderança de Jacobina Maurer, e que foram enterrados em uma vala comum, mostra como o cemitério testemunhava nas edificações e na falta delas, entre os colonizadores, o conceito do bem morrer. Suicidas também podiam ser sepultados fora dos muros do cemitério ou, na melhor das hipóteses, num canto junto ao muro, ressaltando sua condição de “outsiders” até mesmo no espaço destinado ao descanso eterno.
Os cemitérios cumpriam entre os colonos outros dois objetivos: homenagem ao falecido e a sobrevivência na memória dos vivos (espaços da memória comunal). Adotamos a expressão “cultura do luto” para melhor entendimento desses imaginários. As homenagens sob a forma de epitáfios podem ser encontradas em outros cemitérios, mas fica perceptível que entre os evangélico-luteranos as lápides serviam para amenizar a saudade e vivenciar o luto, explicando, assim, a razão de uma melhor conservação e preocupação com a estética.
É possível ventilar a possibilidade de que a saudade em relação aos seus finados conduza os evangélicos, com mais frequência, aos cemitérios. Para os católicos, é possível que as missas de sétimo e trigésimo dia, ou anuais, intercedendo pela alma do falecido, bem como o valor da indulgência, sejam prioridade em relação à preservação e à manutenção do túmulo no cemitério. Afinal, o morto continua inserido na família. A leitura e interpretação dos cemitérios ajuda na compreensão da história de parte do catolicismo e do evangélico-luteranismo nas regiões coloniais do RS.
Nos dias atuais, a morte e o morrer passam por mudanças profundas no pensamento e na prática da sociedade. As tecnologias, o mercado de trabalho e mesmo questões éticas, dessacralizaram esse processo nos últimos 30 anos. Percebe-se que a morte perdeu valor também pela diminuição do papel das igrejas nas comunidades. O próprio luto não é mais expresso como antigamente. Os sentimentos de dor e pesar passaram a pertencer apenas ao indivíduo. Isso evidencia um maior individualismo da sociedade e uma dessocialização da morte, ancorada na desobrigação da cultura religiosa numa sociedade laica, na qual as regras já não são mais estabelecidas pela igreja.
O principal responsável pela instituição de uma data dedicada à alma dos mortos foi o monge da ordem Beneditina Odilo de Cluny, que viveu entre os anos de 962 e 1049. Abade de Cluny, na Borgonha, França, ele instituiu aos membros de sua abadia e a todos aqueles que seguiam a ordem Beneditina a obrigatoriedade de rezar pelos mortos.
A partir do século 12, essa data popularizou-se em todo o mundo cristão medieval como o Dia de Finados. Apesar do processo de secularização e laicização que o mundo ocidental tem experimentado com o advento da modernidade, o Dia de Finados permanece como sendo uma data específica para se meditar e rezar pelos mortos. Na doutrina católica, a alma da maioria dos mortos estaria no purgatório, passando por um processo de purificação – e, justamente por isso, precisando da oração e de uma intercessão dos vivos junto a Deus pelo alívio do sofrimento e aflição dessas almas. Por isso, o Dia de Finados ficou conhecido na Idade Média como o “dia de todas as almas”, o dia seguinte ao primeiro de novembro, “dia de todos os santos”.