Não é de hoje que tenho curiosidade de saber a origem de expressões populares. Coisas de magia, sei lá, como diz a música Deu pra Ti, de Kleiton & Kledir, uma canção de exílio que se apropria de uma gíria eternizada no linguajar porto-alegrense para expressar a saudade da terrinha (a dupla recém havia se mudado para o Rio de Janeiro quando a compôs).
O que muita gente não sabe é que a expressão é anterior à música dos irmãos pelotenses, lançada em 1981. Sejamos justos: a gravação de Kleiton & Kledir deu projeção nacional ao bordão, que tem o sentido de “chega”, “cai fora”, “estou cheio” ou algo do gênero.
Só que ele apareceu dois anos antes, em outubro de 1979, em pichações nos muros da Capital. Vinha sem maiores explicações, mas com um complemento: “Deu pra ti, anos 70”. O segredo foi desfeito quando se soube que se tratava do anúncio de um show de Nei Lisboa e Augusto Licks, agendado para dezembro daquele ano, no Teatro Renascença (em um tempo sem internet ou celular, valia a tática do marketing de guerrilha).
A sugestão teria vindo do músico Gelson Oliveira:
— Quando alguém não parava de solar a guitarra durante os ensaios, Gelson repetia: "Deu pra ti, cara". No contexto do show, era como se a gente dissesse: "Graças a Deus, essa década (marcada pela repressão política) acabou!" — contou Nei, certa vez, em versão confirmada no livro Contrapontos: Uma Biografia de Augusto Licks (Belas Letras, 2019).
O show foi o ponto de partida do filme homônimo de Nelson Nadotti e Giba Assis Brasil, primeiro longa-metragem em super 8 lançado no Rio Grande do Sul, em março de 1981. Em tempo: Deu pra Ti, Anos 70 é também o título de uma coletânea de poemas de Chico Settineri, Anne Greice, Álvaro Luiz Teixeira e Pablo Mello, que transitou no circuito underground da Capital por aqueles dias. Dito isso, está esclarecida a origem da gíria que saiu dos guetos culturais do Bom Fim para ser incorporada à linguagem cotidiana dos porto-alegrenses? Capaz!
Há controvérsias, e muitas. Giba Assis Brasil diz que a expressão circulava já em 1978, época em que ele trabalhou no departamento de esportes da Rádio Gaúcha, sendo usada a todo momento por locutores e repórteres. Já o artista gráfico Roberto Silva, autor do cartaz do super 8 (com Luiz Ferré), lembra de escutá-la antes ainda, durante a infância, em Santana do Livramento.
Atarantado, peço socorro ao professor Cláudio Moreno, para quem o uso do “deu” como forma de encerrar um assunto ou concluir uma ação era difundido há décadas, seja para terminar um namoro ou para o cobrador indicar ao motorista que era hora de repor o bonde ou o ônibus em movimento, em direção à próxima parada, entre tantas situações. Daí a dizer “deu pra ti” foi um pequeno passo, conforme o mestre, que ainda teve paciência de me aconselhar:
— Caro Paulo César, não caias na tentação de tentar "explicar" de onde vieram ou como nasceram essas gírias. Guarda este ensinamento: podemos descobrir, em 99% dos casos, a origem dos vocábulos, mas ninguém pode detectar, com precisão, a origem dessas expressões populares. Elas brotam espontaneamente, algumas vezes em vários lugares, simultaneamente.
Com isso, boto a viola no saco e desisto de buscar a origem do que não tem origem, ou melhor, do que tem origem tão difusa na memória coletiva. O máximo que posso fazer é observar — com prazer e admiração — os mistérios da construção espontânea do linguajar popular.