A principal rodovia que liga Joanesburgo à Cidade do Cabo leva o viajante através do Grande Karoo, uma imensa área desértica de terra avermelhada pontilhada de arbustos e aparentemente povoada por, no máximo, uma ou duas cabras-de-leque saltitantes. Poucos são os estrangeiros que se aventuram nesse meio.
Entretanto, seguindo por um trecho de 32 quilômetros chega-se a um tipo de oásis: uma "dorp" africâner empoeirada, ou vilarejo agrícola, em uma área surpreendentemente fértil banhada pelo rio que desce as encostas do norte das Montanhas Swartberg. A impressão é a de, subitamente, se deparar com a cidade encantada de Brigadoon caminhando no meio das Terras Altas escocesas, ou dar de cara com a Cidade das Esmeraldas depois de uma longa peregrinação na Estrada dos Tijolos Amarelos.
Prince Albert às vezes tem aquele visual modorrento de assentamento pioneiro do Velho Oeste, mas é conhecida entre os especialistas em viagem pelos exemplos bem conservados da arquitetura colonial holandesa do século XIX, com as típicas arestas arredondadas, e pelos figos e azeitonas saborosos, além das ovelhas, criadas para a obtenção da lã mohair e de uma carne supermacia. Nas últimas décadas, porém, surgiu uma colônia de artistas e artesãos das mais vibrantes.
Reconhecemos os tons graciosos de Greenwich Village e Chelsea em uma cidadezinha minúscula que tem uma dúzia de galerias de arte e ateliês, e restaurantes simples que lhe deixam a impressão de ter acabado de comer na casa da avó.
A conselho de um amigo sul-africano, eu e minha mulher resolvemos sair da Rodovia N1 e passar vários dias explorando a pequena vila que ganhou o nome do consorte da rainha Vitória – e não demorou nada para nos encantarmos com seu charme lânguido. Reconhecemos os tons graciosos de Greenwich Village e Chelsea em uma cidadezinha minúscula que tem uma dúzia de galerias de arte e ateliês, e restaurantes simples que lhe deixam a impressão de ter acabado de comer na casa da avó.
É claro que há a ambivalência de promover Prince Albert, uma vez que o que a torna excepcional é justamente sua aura de tesouro escondido. De qualquer forma, é cada vez maior o número de turistas que a estão descobrindo, da mesma forma que a própria vilinha procura atrair mais e mais europeus, asiáticos e norte-americanos, que hoje podem visitar a África do Sul sem o constrangimento de gastar em uma terra sob a mordaça do apartheid.
Arquitetura clássica e arte moderna
Sinceramente, não fizemos muita coisa além de passear pela rua principal, cheia de cores, nadar na piscina do pequeno hotel, admirar o cenário montanhoso de dia e o céu estrelado que faz o sonho de qualquer astrônomo à noite. Para evitar as curvas fechadas da estradinha de cascalho que corta as montanhas altíssimas, muita gente prefere o caminho mais longo, via Prince Albert, rumo à famosa Garden Route, no litoral do Oceano Índico. Fizemos percurso semelhante, nervosos por termos de encarar a direção no esquema britânico, do lado esquerdo, ao longo de despenhadeiros imensos, ainda que na nossa opção o aclive fosse mais suave e a estrada, pavimentada. Isso porque minha mulher, que é sul-africana, mas deixou o país há 50 anos e volta de quando em vez para visitar a família, precisa renovar sua intimidade com a paisagem cuja beleza está instrinsecamente gravada em sua alma.
Church Street abriga mais de uma dúzia de estruturas de arquitetura colonial holandesa, algumas enfeitadas com buganvílias e plantas tropicais, como fynbos, protea ou cactos, mas o fato é que uma parada em qualquer lugar nos lembrava de que Prince Albert é um lugar incomum e curioso.
Um bom exemplo são os cinco tocos robustos de eucaliptos de mais de 130 anos conhecidos como "os burghers de Prince Albert", que parecem mais monstros retorcidos saídos de "Fantasia", da Disney, e foram remodelados, em 2007, pelo cinzel do artista local Richard John Forbes e quatro de seus aprendizes. Assim, o que restou das árvores virou monumento histórico e, como o folheto explica, "tirou a arte de dentro da galeria".
"Com certeza, um tem até barriguinha e o outro, com o perdão da palavra, bumbum! A população ficou muito dividida em relação à obra; há quem aprove e valorize o trabalho de Richard, mas muitos veem as esculturas apenas como profanação", conta Kurt Steiner, dono de uma das galerias.
Nós nos deparamos com uma carroça permanentemente estacionada em frente ao museu, homenagem aos pioneiros do século XVIII que atravessaram o Karoo e as Swartbergs para plantar. Perto dela fica o cinema Showroom, construído em 2013, em art déco, por um cineasta local que trabalhou em "Longa Caminhada até a Liberdade", sobre a luta de Nelson Mandela para acabar com o apartheid (quando estivemos lá, o filme em cartaz era mais leve). Passamos até por um estúdio de ioga, prova inegável do perfil dos novos habitantes.
Câmeras que registraram a história
No Watershed, prédio que abriga uma série de galerias, analisamos as fotos de Jürgen Schadeberg, expatriado alemão que se mudou para Joanesburgo e baseou sua carreira no registro das dificuldades dos negros sul-africanos, principalmente heróis como Mandela. Como fotógrafo da revista "Drum", treinou uma geração inteira de profissionais negros que capturaram imagens como a humilhante dança "Tauza", da qual os presidiários são forçados a tomar parte para mostrar aos guardas que não têm armas.
Havia impressões prateadas, autografadas pelo artista, à venda... pela módica quantia de US$ 4.800 cada, incluindo uma de Mandela quando ainda era presidente, visitando a cela que ocupou na Ilha Robben, em 1994, e outra de quando era jovem, sorridente, na porta do tribunal onde, em 1958, foi julgado com outras 50 pessoas por traição, embora tenha sido inocentado.
Havia obras de artistas locais, como J. P. Meyer, especializado em cenas esmaecidas de homens e meninos em poses atléticas e tons sépia. Watershed também vende almofadas em cujas capas aparecem fotos mais peculiares, como a de um trio africano de jazz envolto pela fumaça do cigarro de um clube noturno. Vimos também um vaso de cerâmica salpicado de rosa de sua autoria – e que por sinal hoje se encontra na nossa sala.
Segundo Steiner, dono do Watershed, em Prince Albert há trinta pintores, escultores, designers e artesãos que se estabeleceram ali atraídos pela tranquilidade e isolamento do local. Suas obras ficam expostas, no fim da rua principal, na Gallery, que também conta com um café movimentado.
De pinturas na pedra a máquinas de escrever
Quando perguntei a Steiner quando Prince Albert se tornou uma colônia de artistas, ele respondeu com uma leve crítica em relação à perspectiva ocidental: "Os primeiros a deixar sua marca foram os Khoi-San, que retrataram este trecho árido e antigo do território nas paredes das cavernas e nas rochas."
Khoi-San é o termo geral que abrange dois grupos de nativos negros que não falam as línguas bantu, como a maioria zulu e xhosa. Conhecidos pelos sons estalados de suas consoantes, criaram animais, caçaram e se alimentaram da vegetação abundante nas encostas das Swartberg durante milhares de anos até serem desalojados gradualmente pela expansão bantu, há cerca de 1.500 anos, e expulsos pelos colonizadores em meados do século XVIII. Os brancos os chamavam, pejorativamente, de Hotentotes (Khoi) e Bosquímanos (San). Hoje, seus descendentes chegam a 400 mil e estão espalhados pela região sul do continente, principalmente em áreas áridas como o Kalahari.
O Fransie Pienaar Museum tem fotos de pinturas na pedra, mas pouco instrui a respeito da história dos Khoi-San. Os trabalhos, feitos com ingredientes como sangue de antílope e clara de ovo, mostram elefantes, cervos e outros animais, além de procissões de caçadores e outras cenas do dia a dia. Para quem tiver tempo, há diversos pontos no país onde é possível conferir as pinturas in loco – como a Serra Cederberg, que fica duas horas ao norte da Cidade do Cabo, com mais de 500 exemplares artísticos, e inclui uma trilha de quatro quilômetros de extensão acessível para caminhantes.
As salas do museu contam a história da "fundação" de Prince Albert, em 1762, um século depois que os holandeses chegaram àquela parte da África, e estão lotadas de ferramentas, louças, telefones, máquinas de escrever, instrumentos musicais, armas e outros objetos do século XIX e do início do século XX. Depois de atravessarem o Karoo (palavra khoisan que significa "deserto") de carroça, os agricultores Zacharias e Dina De Beer cultivaram pomares, vinhedos e trigais. Outros produtores os seguiram e, em 1855, a vila já comportava um ministro da Igreja Reformada Holandesa. A igreja foi erguida dez anos depois, e ainda domina a paisagem.
Uma terra de contrastes gritantes
O museu também nos ensina que uma linha férrea que sai da Cidade do Cabo, a abertura de tortuosas passagens nas Swartbergs, um ciclo áureo e breve de criação de avestruzes para a importação das penas para os europeus e uma febre do ouro contribuíram para a expansão do vilarejo, que hoje conta com sete mil habitantes, dos quais 86 por cento são mestiços, onze por cento brancos e apenas dois, negros.
De volta ao ar livre, é difícil não se deixar impressionar pelo contraste gritante, até mesmo para os padrões da África do Sul, entre a rotina e as moradias confortáveis dos brancos e a pobreza e a falta de estrutura das casas dos mestiços e negros que trabalham nos hotéis, lojas e fazendas de propriedade e administração brancas. Nas ruas, as crianças descalças às vezes posam para fotos na esperança de ganharem alguns rand.
Prince Albert é conhecida pela boa comida que, nas nossas incursões locais, aproveitamos ao máximo – como quando nos vimos sentados à sombra do jardim tranquilo do café Lazy Lizard, beliscando o pão caseiro acompanhado do Karoo Plate, uma travessa lotada de carne de cordeiro fria, queijos, iogurte, figos e azeitonas.
O queijo e o iogurte são do tradicionalíssimo Gay's Guernsey Dairy. Gay van Hasselt recebe os visitantes com exuberância, relembrando como começou o laticínio, em 1990, com três vacas e um kraal (celeiro) de pedra – hoje são 50 animais. E sente orgulho por ter ajudado a fazer com que os moradores da região encarassem o iogurte não como vrot melk (leite azedo), mas como uma delícia ácida.
Quando o calor de janeiro começou a incomodar, voltamos para nossa pousada, De Bergkant Lodge – construída em 1858 por um casal suíço recém-casado, um dos 14 prédios locais considerados monumentos históricos –, para nadar ao som dos pássaros. Michi e Renate Soennichsen sabem como mimar seus hóspedes.
Os dois restaurantes que eles recomendaram eram de alta qualidade e custaram o equivalente a um estabelecimento acessível em Manhattan. No Olive Branch, aconchegante e despretensioso, o chef Hendry Olivier faz questão de explicar o preparo do assado de carneiro, que leva quatro horas no forno – e, depois de prová-lo, concluímos que ruminar no deserto é, no mínimo, uma virtude.
Um tanto menos explícito é o Karoo Kombuis, ou Cozinha Karoo, que não passa de um bangalô pequeno em uma travessinha. São só três mesas cobertas com toalha xadrez na sala da frente e três na de trás. Uma lousa no pátio estreito serve de cardápio, mostrando apenas três opções; além disso, o estabelecimento só aceita dinheiro e o cliente tem de levar a própria bebida.
A casa é administrada com eficiência por dois veteranos da South African Airways, Theunis Botha e Denise Potter, ambos ex-comissários de bordo. Hoje, ele é responsável pela cozinha e o serviço, enquanto ela, sempre de cafetã colorido e bandana caprichada na cabeça, é a maître d', recebendo os clientes e satisfazendo suas preferências.
A decorarção eclética lembra muito os resquícios de uma loja de roupas antiga, com uma parede coberta de sapatos de salto alto e a outra, de chapéus de sol exuberantes. Minha mulher provou a torta de frango, eu comi o cordeiro assado, mas lamentei não ter provado o baboutie, famoso bolo de carne apimentado sul-africano. Fechamos a refeição com a sobremesa nacional, ou pudim malva. A comida saborosa e o ambiente tranquilo e pitoresco ajudaram a tornar a experiência única.
Durante toda a nossa estada, aproveitamos o ritmo local tranquilo, as atrações, discretas, mas únicas, e a paisagem e a flora encantadoras. Um casal de meia-idade com quem trocamos amenidades todos os dias no café da manhã nos contou que há quinze anos eles passam três semanas em Prince Albert anualmente.
Logo de cara reagimos com espanto – como é que alguém consegue passar três semanas em um lugar tão isolado? –, mas, depois de alguns dias, entendemos perfeitamente.
Por Joseph Berger