Por Sarah Khan
Obviamente eu estava sonhando.
Pegara no sono em algum ponto entre Port Louis, a capital meio caída, mas cheia de personalidade dessa ilha remota no Oceano Índico, e o lago da Grand Bassin, embalada pelo agradável vaivém do táxi que seguia pelas estradas sinuosas, ladeadas por canaviais. Sem aviso, a linha entre sonho e realidade se perdeu quando abri meus olhos para me deparar com uma estátua de mais de trinta metros de Lord Shiva olhando benevolamente para a minha figura ainda zonza.
Fechei os olhos; abri de novo. Nada. Totalmente desperta.
Meu motorista, Roshan, atravessou a entrada vigiada indomitamente pela divindade e seu tridente colossal para se aproximar de Ganga Talao, versão local do rio sagrado da Índia, o Ganges. O sol de fim de tarde brilhava no lago cercado por estátuas de Hanuman, Lakshmi e Vishnu enquanto as cerimônias se desenrolavam no templo. Esse é o local mais sagrado para a maioria hindu que vive nas ilhas; o taxista me conta que, todo ano, durante o festival Mahashivratri, ele sai de casa, em Rose Hill, caminhando três horas, descalço, para chegar ali e se reunir a 500 mil devotos de todas as partes do país.
Não muito longe de onde me encontrava, à sombra de Shiva, tinha gente vivendo o clichê tropical imortalizado nos papéis de parede de computadores das empresas do mundo todo. A menos de vinte quilômetros dali, o pessoal reclinado na areia, bebericava languidamente água de coco enquanto tentava definir a cor do mar. Azul-celeste? Azul-turquesa? Azul-céu? É um diálogo socrático que levaria o dia inteiro para se resolver. A maioria dos turistas vem às ilhas para uma adoração diferente da que encontrei em Ganga Talao: a peregrinação ao altar do deus sol.
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Depois da visita ao posto avançado no Oceano Índico, em 1896, Mark Twain escreveu: "Basta ver um cidadão para saber que Maurício veio primeiro, depois o paraíso e que ele foi copiado das ilhas".
Esse protótipo de perfeição entrou no meu consciente nos anos 1990, quando o país se tornou o cenário favorito das canções de Bollywood. Um bom exemplo: o bonitão barbudo Akshay Kumar e a bela Shilpa Shetty balançando os quadris agressivamente, totalmente fora de sincronia, ao som da melodia Churake Dil Mera em Main Khiladi Tu Anari, de 1994. Minha impressão era semelhante a de milhões de turistas que se hospedam em seus resorts all-inclusive e só saem das espreguiçadeiras para o ocasional mergulho na piscina.
Ainda caloura do Boston College, fiz amizade com o primeiro mauriciano por causa da paixão comum por esses filmes. Santosh se tornou uma fonte de fascinação infinita: eu achava que era indiano, mas ele falava inglês com um sotaque francês, conversava com os pais em crioulo e dizia que era africano. Que lugar do mundo poderia reunir tantas culturas?
– A gente é meio que um quebra-cabeça. Há peças muito diferentes entre si. Os povos mantiveram suas identidades, mas encontraram uma forma de conviver bem e acabou dando um resultado único – explicou ele, quando voltamos a nos encontrar em sua terra natal, quinze anos depois.
Na verdade, foi esse mosaico fascinante que me atraiu para as praias de Maurício. Fuçando nas redes sociais, a impressão que se tem é a de que as ilhas começam e acabam nos resorts, mas estava disposta a explorar o que havia além das piscinas infinitas e spas elegantes.
As ilhas foram descobertas pelos árabes em 975, mas, quando os holandeses chegaram por lá, em 1598, estavam desertas, com exceção dos animais silvestres como dodô, ave que ficou famosa por ser extinta pelos europeus, mas que ainda resplandece nas notas das rúpias locais. Os franceses aportaram no século 18, seguidos dos britânicos. Com a abolição da escravidão, em 1835, os povos do Oriente começaram a chegar, tanto os comerciantes chineses como os aprendizes indianos – e as dificuldades enfrentadas por esses últimos estão registradas em uma mostra comovente no museu Aapravasi Ghat, em Port Louis, posto de imigração onde eram recebidos, hoje transformado em Patrimônio da Humanidade pela Unesco.
As marcas deixadas por tantas correntes imigratórias são indeléveis: atualmente, 70% da população de 1,3 milhão de habitantes são descendentes de indianos, com crioulos, sino e franco-mauricianos completando a mistura. Andando pelo Aeroporto Internacional Sir Seewoosagur Ramgoolam em uma noite úmida, segui as placas que indicavam a saída em inglês, francês, hindu e chinês.
– No fim das contas, a singularidade deste lugar está na população. Evoluímos para gerar um povo único, totalmente diferente de todos aqueles que nos originaram. Tem gente que parece indiano, mas não é, outros que aprecem africanos, mas não são – explica Santosh.
Atualmente, Maurício poderia posar como um bom exemplo de harmonia racial (nesses tempos de intolerância, seria bom se o resto do mundo lhe prestasse um pouco mais de atenção), mas é na culinária que as culturas se misturam com mais naturalidade. Tradições díspares convivem aqui há séculos, e o resultado são pratos com sabores indianos, franceses, chineses e crioulos. Na manhã seguinte, saí do apartamento de Santosh, de frente para a praia de Trou-aux-Biches para explorar a sinergia cultural com meu paladar.
Na feira confinada de Quatre Borne, região íngreme aninhada entre as montanhas que mais parecem ter sido inseridas no pano de fundo com Photoshop, experimentei meu primeiro gâteau piment, um bolinho feito com farinha de grão-de-bico temperada com pimenta.
– Tem muita gente que come no café da manhã, junto com o pão e o queijo – explicou Raju, meu motorista, enquanto me ajudava a escolher quatro unidades perfeitamente redondas e gorduchas, pelas quais paguei dez rúpias, ou US$0,30.
Com o inglês limitado dele, o meu francês de jardim de infância e uma palavra hindu aqui e ali, conseguimos um arremedo razoável de conversa. Perambulamos pela praça de alimentação, onde os quiosques ofereciam de tudo, desde riz frit (arroz frito) a curry agneau (curry de carne de carneiro), passando pelo puri chaud (pão frito). Depois, Raju me levou a uma rua residencial em Rose Hill, onde almocei no despojado Dewa & Sons. Fiz questão de ir até lá para provar a comida de rua nacional, o dholl puri. Assim como o banh mi distingue o Vietnã e o doner kebab, a Turquia, essa massa de batata e lentilha servida sobre um puri macio representa Mauricio. É tão deliciosa quanto desajeitada de comer, apimentada, mas não tão forte a ponto de esconder os sabores sutis da cúrcuma e do cominho.
Minha antropologia gastronômica me fez atravessar a ilha. Bastam dez minutos de carro para descortinar o que mais parece uma montagem cinematográfica do que topografia de verdade: casebres de metal corrugado dando espaço para arranha-céus ultramodernos; crianças pedalando com os canaviais como pano de fundo; montanhas dentadas que mais pareciam saídas da mente de Picasso; fileiras de chalés cor de rosa e azul-cobalto se destacando contra a infindável imensidão verde-esmeralda.
Decidi passar minhas últimas duas noites em um hotel. Escolhi o Lux, à sombra da montanha Le Morne, outro imponente Patrimônio da Humanidade da Unesco, em cujas cavernas os escravos buscavam refúgio. As Ilhas Mauricio, que tinha acabado de conhecer, encontravam-se do outro lado do monólito. Hospedada ali, aproveitei a suíte luxuosa, o happy hour caprichado, o azul sobrenatural do mar. Foi fácil entrar em transe e me enganar, achando que não havia nada além da visão periférica da minha espreguiçadeira que merecesse dois segundos de atenção. O resto da ilha já me parecia um sonho confuso.
Mas Shiva continuava ali para me lembrar que não.
Onde ficar:
- 20 Degres, Sud Coastal Road, Pointe Malartic, Grand Baie; 20degressud.com.
- Lux Le Morne, Le Morne Plage; luxresorts.com/luxlemorne.
Onde comer:
- Lambic Restaurant and Bar, 4 St. Georges St., Port Louis.
- La Clef de Champs, Queen Mary Avenue, Floreal; laclefdeschamps.mu.
- Domaine de Labourdonnais, Mapou; domainedelabourdonnais.com.
- Maison Eureka, Moka; maison-eureka.restaurant.mu.
O que fazer:
- Os passeios da My Moris Walking Tours, mymoris.mu.
- Conferir Apravasi Ghat, Patrimônio da Humanidade, 1 Quay St., Port Louis.
- Museu do Açúcar L'Aventure de Sucre, Beau Plan, B18, Pamplemousses; aventuredusucre.com.
- Museu da História Nacional, Royal Road, Mahébourg.
- Champs de Mars, o segundo hipódromo mais antigo do mundo, Pope Hennessy Street, Port Louis.
- St. Aubin, Rivière des Anguilles; rhumsaintaubin.com.