"Nem ao céu, nem a terra, estamos no meio."
A conclusão de que o homem depende da terra onde pisa e do céu acima dele sintetiza o conceito que norteou cultura, religião e sociedade de civilizações antigas como a egípcia e a mesopotâmica. E também a peruana. As três são, inclusive, contemporâneas.
- É como imaginar que temos um Egito na América Latina - afirma Mariana Watson, diretora do Museo Larco, pioneiro nos estudos arqueológicos peruanos e que propõe uma nova maneira de compreender os povos da antiguidade.
Foram os incas o último e mais conhecido povo a ocupar o território peruano antes da chegada dos colonizadores. É herança deles o destino mais conhecido do Peru,
Machu Picchu, mas se engana quem pensa que seja o único. Ruínas de civilizações anteriores nos dão a dimensão da grandiosidade deste povo que (re)aprendeu a ter orgulho do seu passado.
Estas palavras, que podem ser entendidas como uma filosofia de vida, dizem muito sobre o Peru e nos fazem refletir sobre os povos do passado, do presente e do futuro. O terceiro maior país em extensão territorial da América Latina se divide nas regiões Costa do Pacífico, Serra e Selva. Mas as subdivisões poderiam ser outras. Há o Peru Natural e o Peru Ancestral, por exemplo, que mostramos nesta reportagem.
Peru Ancestral
Cusco, o umbigo do mundo
Pelas ruelas da parte antiga da capital do Império Inca, Cusco, circulam milhares de turistas. Das casas de paredes brancas com as janelas contornadas por detalhes em azul ou verde, ou das sacadas ao estilo espanhol, ouve-se diversas línguas, faladas por gente vestida das mais diferentes formas e dos mais variados padrões sociais. Tudo em sintonia com a cidade e com seus habitantes, que sabem tratar muito bem seus visitantes. Não à toa, o nome da cidade na língua quéchua significa "umbigo do mundo".
Vista geral de Cusco
Foto: Igor Müller, Agência RBS
O Mercado San Pedro é o coração da cidade. O prédio, do início do século 20, não tem grandes atrativos. A beleza está no seu interior: o povo. É ali que os cusquenhos compram seus alimentos até hoje. Por razões sanitárias, estuda-se proibir a venda de alguns produtos, como carnes, que são expostas e vendidas sem refrigeração.
A Praça das Armas de Cusco é abençoada pela Catedral de Santo Domingo. Construído com as pedras do Templo do Sol (Sacsayhuámán), o prédio levou mais de cem anos para ser concluído e revela a influência de diferentes estilos arquitetônicos. No seu interior, verdadeiras preciosidades. A mão-de-obra indígena se manifesta tanto na parte estrutural quanto nos ornamentos. Pinturas e entalhes em madeira são as principais obras da Escola Cusquenha, manifestações artísticas do século 17 que são a materialização do sincretismo e da integração da cultura andina à espanhola.
Em uma das paredes, é possível contemplar, por exemplo, uma releitura de A Última Ceia, na qual um dos pratos servidos é um cuy (porco da índia frito, iguaria da região). A área do Coro da Catedral, todo entalhado, é de tirar o fôlego, assim como as peças do ostensório em exposição. As 4 mil peças em prata cravejadas com pedras preciosas são contempladas na Missa de Corpus Christi.
A Catedral é, também, a moradia do Cristo Moreno. A história - e a fé do povo de Cusco - atribui ao Nosso Senhor dos Tremores o fim de um terremoto ocorrido em 1650. Em um dos mais longos abalos sísmicos registrados na região, os fiéis rezaram para um Jesus Cristo entalhado na madeira pelo tempo de três credos. Ao término do último "Creio em Deus pai...", os tremores pararam, e a escultura assumiu uma coloração escura. Desde então, a imagem figura em local de destaque e tem grande importância na vida religiosa da cidade.
Além de história e comércio, a Cusco cosmopolita tem uma das melhores noites do país. Reconhecida pelos peruanos e por turistas, a boemia é embriagadora. Não são tantas as opções, mas as pessoas estão (muito) dispostas a se divertir e são muito receptivas. Para os que gostam da vida noturna, Cusco tem que estar no roteiro - e é bom reservar uma manhã mais calma para curar a ressaca!
Machu Picchu
Situada a 2,4 mil metros de altitude, Machu Picchu é uma área de 35 mil hectares onde se espalham prédios divididos de acordo com sua função: agrícolas, residenciais e religiosos.
Ruínas de Machu Picchu
Foto: Andreza Rodrigues, CVC, divulgação
Além da magnitude das construções da cidade erguida há mais de 500 anos, emana dali uma energia muito forte. O templo maior da cidade está posicionado de maneira estratégica para a observação dos astros e para receber os raios do sol, que passam por entre as montanhas Machu Picchu ("montanha velha", na língua quéchua) e Huayna Picchu ("montanha nova"). Do meio dessa fortaleza natural, nasce o Caminho do Sol, que servia como porta de entrada da cidade. Percorrendo as ruínas, é possível compreender a complexidade daquela sociedade, o nível de conhecimento e o esforço dos incas em deixar sua marca no mundo.
Ainda na região do Vale Sagrado, destacam-se outros dois sítios arqueológicos. Em honra ao deus Raio, foi erguida a cidade de Sacsayhuamán. No parque de mesmo nome, ficou apenas o que foi poupado da destruição espanhola. O que nem o tempo e os conquistadores conseguiram destruir foram as grandiosas construções megalíticas, compostas por pedras com mais de 80 toneladas.
Lima
Lima tem mais de 40 pirâmides da era pré-inca. Construídas com tijolos de barro, resistiram ao tempo porque raramente chove na capital. A baixa estatura das construções maciças garantiu que se mantivessem em pé, apesar dos terremotos. Só não resistiram ao próprio homem. As que sobraram são, hoje, cercadas e cuidadas.
Sítio Arqueológico de Pachamac, em Lima
Foto: Igor Müller, divulgação
Destaca-se o Santuário Arqueológico de Pachamac, distante 30 quilômetros de Lima. O complexo de 17 pirâmides foi considerado um dos mais sagrados destinos de peregrinação religiosa da América Latina e pode ser apreciado em um passeio guiado pela trilha que termina no Templo do Sol. Ao término de uma caminhada de 30 minutos, o visitante pode admirar, a partir do deserto, a vista do Pacífico.
Ollantaytambo
Servia como uma espécie de grande despensa da civilização inca. Dos degraus construídos na encosta das montanhas, os incas transformaram a região do vale do Rio Urubamba no celeiro do Peru. A composição da terra, o cruzamento genético de sementes e as águas do degelo das cordilheiras que formam o rio garantiram o crescimento de uma grande variedade de vegetais. No topo da montanha, eram armazenados os alimentos. Graças à altitude, muitos eram conservados pelo frio.
Sítio Arqueológico de Ollantaytambo
Foto: Igor Müller, divulgação
No presente, a cidade também serve de escala para o trem que sai de Cusco com destino a Aguas Calientes, cidade mais próxima de Machu Picchu. Há turistas que preferem desfrutar da tranquilidade do vilarejo ou dos hotéis de luxo que a região oferece em algum ponto da viagem.
Deserto do Ica
O sobrevoo sobre as linhas de Nazca, no Deserto do Ica, é um mergulho no Peru Ancestral. Astronauta, cachorro, macaco, colibri são alguns dos desenhos que marcam a existência da civilização Nazca (100 d.C.) e que intrigam estudiosos até hoje. Alguns afirmam que eles serviam como um calendário. Há quem acredite que, como só podem ser vistos do céu, haveria uma cooperação alienígena na feitura deles.
Sobrevoo sobre as linhas de Nazca
Foto: Andreza Rodrigues, CVC, divulgação
Mistérios à parte, os desenhos são realmente impressionantes. Para vê-los, é preciso subir a bordo de uma pequena aeronave com capacidade para até 12 passageiros. O avião sobe a diferentes níveis do solo e faz diversas manobras. É preciso ter estômago forte para aguentar a jornada, mas o visual compensa o desconforto. A viagem dura cerca de três horas.
Peru Natural
Beleza e aventura
No Peru, há espaços onde a natureza pode ser apreciada com doses variadas de aventura. Na Serra, por exemplo, há a Trilha Inca, na qual o viajante passa dias em área de mata até chegar a Machu Picchu, o que garante uma imersão natural (e espiritual, dizem) indescritível. Mas as experiências
deste repórter foram mais à costa, onde o mar encontra o deserto e nos brinda com uma paisagem de contrastes e belezas únicas. Ali, o pôr do sol tira o fôlego e oferece uma sensação de paz e não faltam aventuras para dar aquele friozinho na barriga.
A cerca de três horas de Lima, Paracas tem tudo isso. A cidade em si tem poucos atrativos, mas não é à toa que tantos hotéis e resorts se instalaram ali. Da paisagem ao clima, os atrativos naturais são motivos mais do que suficientes para optar por esse destino - sem contar todas as muitas mordomias dos hotéis, claro.
Na terra
Todos os resorts da região têm entre os atrativos praias particulares, mas é no Deserto de Ica que está a emoção. Em um passeio de buggy, o turista pode sentir o vento (e milhares de grãos de areia) cortando o rosto.
Passeio de buggy no deserto de Ica
Foto: Andreza Rodrigues, CVC, divulgação
Mas a diversão começa quando o veículo desce a primeira duna. O grito escapa da garganta, o estômago congela. Depois, só risadas e doses cavalares de adrenalina. Entre os sobes e desces, uma parada para contemplar o sol e tirar fotografias. Os motoristas são muito criativos ao fazer os cliques, diga-se de passagem.
Naquela imensidão de areias brancas e sol de um alaranjado intenso, ainda é possível brincar de esquibunda. Em uma prancha de madeira, você se sentirá um surfista nas dunas.
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Na água
A bordo de uma lancha, a 18 quilômetros da costa, um complexo de ilhas forma a Reserva Nacional Ilhas Ballestas. Essas formações rochosas são o lar de 5 milhões de aves, leões-marinhos, focas e pinguins.
Após 30 minutos sentindo o vento gelado cortando o rosto, a natureza se manifesta com exuberância. Os que têm mais sorte serão acompanhados por golfinhos ao longo do caminho.
Reserva Natural Islas Ballestas
Foto: Andreza Rodrigues, CVC, divulgação
Em um roteiro de cerca de duas horas, o turista tem de ficar atento enquanto faz fotos e admira a natureza. Não raro, os pássaros - verdadeiros donos e soberanos da ilha - presenteiam os visitantes mais distraídos. Cenas do namoro de leões-marinhos, ou da sesta das focas coroam o passeio.
*O repórter viajou a convite de CVC e Avianca