Gustave Flaubert disse uma vez que escrevia seus romances para que se parecessem com determinada cor. "Em Madame Bovary, eu só queria obter uma tonalidade especial, aquela cor de bolor da existência do tatuzinho-de-jardim", afirmou. Ele pode até ter conseguido isso com o retrato que fez do amor ilusório nessa obra, mas Rouen, na França - cidade natal do escritor e cenário para boa parte da história -, evoca um clima bem diferente.
Sei disso porque tive uma amostra recentemente, na visita que fiz à capital histórica da Normandia. Depois de uma viagem de uma hora e meia de trem de Paris, minha família e eu chegamos a Rouen pensando apenas em explorá-la. Colocamos as malas no hotel, em um quarto que dava para a Catedral Notre-Dame de Rouen, também conhecida como a Catedral de Rouen.
Uma das edificações mais impressionantes da cidade, essa igreja gótica gigantesca e exuberante, com seus belos entalhes em pedra, retratada à perfeição não só por Flaubert (com direito a passeio histórico com o sacristão, o "guia eterno", para Madame Bovary, e aquele que logo se tornaria seu amante), mas por pintores tão díspares quanto Claude Monet e Roy Lichtenstein.
(Corentin Fohlen/ The New York Times) Paisagens de Rouen parecem pinturas impressionistas
Rouen fica à margem do Sena - por isso, decidimos caminhar ao longo das ruas de pedra que seguem em direção ao rio. Conforme passamos pelas fileiras de casinhas de vigas, que evocam certa inocência, havia um acordeonista em pé na esquina e uma barraquinha que vendia macarons multicoloridos. Fiquei encantada.
Depois de parar para comer alguma coisa no La Place, casa de influência asiática, dei uma olhada no mapa para ver minha localização - e descobri que, através da janela ao lado de nossa mesa, estávamos olhando para a Old Market Square, uma pequena área ladeada por uma feirinha excepcional e uma única mesa ajeitada em um cantinho onde cabiam seis pessoas sortudas que podiam saborear delícias como foie gras de pato e petits choux com carne de caranguejo. Ao lado da feira, há um prédio moderno com uma cruz imensa na frente que marca o local onde Joana DArc foi queimada na fogueira, por heresia, em 1431.
Uma vez que Rouen foi parcialmente destruída durante a II Guerra Mundial e reconstruída em seguida, ela oferece sobreposições estranhas, mas ao mesmo tempo atraentes, de história sacra e arquitetura moderna. Por exemplo, a Igreja de Santa Joana DArc, o prédio por trás da cruz, foi projetada nos anos 1970 por Louis Arretche para que, pelo menos em parte, lembrasse as chamas que devoraram a santa. A estrutura ousada, concluída em 1979, tem um telhado retorcido no meio, como se atraído para o céu por uma força centrífuga invisível. Cercado por construções medievais, dá a impressão de ser uma nave espacial que aterrissou ali.
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Lá dentro, porém, a história é outra - e a época também. Na entrada, me vi de frente a uma parede com 13 painéis de vitrais do século 16, resgatados em 1939 da Igreja Saint-Vincent, destruída no bombardeio de 1944. (Por sorte, eles foram retirados e guardados em local seguro durante o conflito.) A luz do sol se derramava gloriosamente nas cenas bíblicas retratadas neles, dando-lhes vida graças aos tons vívidos de vermelho, azul e amarelo.
(Corentin Fohlen/ The New York Times) Visitantes no interior da Catedral Notre-Dame, gigantesca construção gótica
Aromas irresistíveis
Joana DArc é, sem dúvida, uma das cidadãs mais famosas e celebradas da cidade. A fortaleza onde ela foi ameaçada de tortura hoje leva seu nome e pode ser visitada durante toda a semana (menos às terças-feiras). Há planos também de montar um Centro para Visitantes em sua homenagem, que funcionaria no palácio do arcebispo.
Ao sairmos da igreja, vimos que tinha começado a chover. Apesar dessa amostra de "bolor de tatuzinho-de-jardim" que ameaçava meu dia, não me deixei abater e fui dar uma espiada na cidade sozinha. Parei para provar o croissant de chocolate da La Tarte à Papa, pâtisserie de onde saíam aromas irresistíveis para invadir as ruas.
A seguir, voltei para o centro, passando pelo exuberante Palais de Justice, o antigo Parlamento da Normandia, e de novo pela catedral. Explorei seu interior e descobri que uma das torres foi apelidada de Torre de Manteiga porque os cidadãos que não queriam deixar de comer manteiga durante a Quaresma poderiam "reaver" a indulgência doando dinheiro à igreja.
(Corentin Fohlen/ The New York Times) Macarons à venda em uma banquinha de rua
No escritório de turismo, do outro lado da rua, soube que existia o Museu de Flaubert e da História da Medicina, uma galeria de 10 salas de onde era possível ver o quarto onde Flaubert nasceu e o hospital onde seu pai era cirurgião. É possível também visitar o Pavilhão Flaubert, uma pequena casa de campo em Canteleu, a 15 minutos de Rouen, onde o autor viveu e escreveu durante 35 anos.
Pausa para a tempestade
A garoa forte da tarde se tornou uma tempestade de início de noite e, por isso, parei para tomar um drinque no Hôtel de Bourgtheroulde, uma mansão do século 15 transformada num hotel butique. Lá dentro, hóspedes bebericavam vinho em sofás de couro em um salão de paredes vermelhas. O longo balcão em uma das laterais, iluminado por baixo, parecia mais um cubo de gelo gigante - o piso, quase todo transparente, me permitia admirar a piscina que havia no andar de baixo e o casal sentado ao lado dela, na maior tranquilidade.
(Corentin Fohlen/ The New York Times) Gros-Horloge, o famoso Grande Relógio, artefato astronômico idealizado no século 14
No caminho de volta para o meu hotel, vi mais um exemplo de fusão do histórico com o moderno: seguindo na direção do Gros-Horloge, ou Grande Relógio - um relógio astronômico magnífico do século 14 que fica em uma arcada do período renascentista -, passei pela infinidade de lojas que parece povoar o centro da cidade. Nada especial, a não ser o fato de que, de cima da estrutura que contém um dos mecanismos mais antigos da Europa, com uma vista espetacular, podia-se também ver fachadas da H&M, Benetton e Esprit. Contrastes como esse com certeza deixariam Marcel Duchamp orgulhoso - afinal, foi ele que introduziu o urinol no mundo das artes. Por sinal, o artista está enterrado ao lado de Flaubert no cemitério local.
De um século para o outro
No dia seguinte, saí sozinha de novo enquanto minha família tomava o café da manhã. Fui visitar a Igreja de Saint-Maclou, uma construção gótica impressionante que na ocasião, infelizmente, estava quase toda coberta por andaimes. Ao voltar para o hotel pelo lado leste, percebi que Rouen de repente se abria e se expressava de uma forma totalmente nova, mesmo tão perto da Notre-Dame.
(Corentin Fohlen/ The New York Times) Hôtel de Bourgtheroulde, mansão do século 15 transformada em hotel butique
Antes de retornar a Paris, levei minha filha, na época com dois anos, para andar no antigo carrossel de madeira, com suas belas e delicadas miniaturas de animais, ao lado da Igreja de Santa Joana DArc. Conforme demos a volta para sair, primeiro vimos um mercado de flores lotado e, a seguir, os restaurantes modernos à volta da Old Market Square, por onde o próprio Flaubert deve ter caminhado muitas vezes, depois a cruz em homenagem à morte de Joana DArc e o Rio Sena à distância. Senti como se estivesse girando de um século para o outro, com um pé no presente e outro no passado.
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