Piazzolla, na letra de seu clássico Balada Para Um Loco, saiu de casa em Arenales e caminhando pelas ruas não demorou a cruzar com um nada discreto louco. O doido fez reverência, tirou o melão que levava na cabeça, deu-lhe de presente uma bandeirola e, meio cantando, meio voando, disse: "Yo sé que estoy piantao, piantao, piantao (Eu sei que estou louco, louco, louco)... Nos ves la luna rodando por Callao...Yo miro a Buenos Aires del nido de um gorrión" (Vemos a lua rolando através de Callao... Eu vejo Buenos Aires a partir do ninho de um pardal).
Bela capital a dos vizinhos argentinos. Eterna, sempre com agradáveis surpresas. Depois de um bom tempo revisitamos Buenos Aires, tiramos fotos e gastamos sola de sapato. Nas imediações de Junín e Córdoba residimos por dois longos anos, eu estudante de pós-graduação, e Teca, minha mulher, dando aulas de português no CEB (Centro de Estudos Brasileiros), órgão cultural da Embaixada do Brasil. Prédio antigo, de saudosa lembrança, a diretora era Maria Julieta Drummond de Andrade, filha do grande poeta e escritor mineiro Carlos Drummond de Andrade. Mas essas são outras histórias.
(Rui Bittencourt/Divulgação) O obelisco na Praça da Repúblixa, na Corrientes com a 9 de Julio, é um dos pontos obrigatórios
Os Gipsy Kings também foram adaptados e cantados na portuária Buenos Aires em seu "Caminando por la calle yo te vi, y un dia me enamoré de ti" (Caminhando pela rua eu te vi, e um dia me apaixonei por ti). Tenho comigo, até hoje, que a grande magia de Buenos Aires é caminhar descompromissado por suas ruas e amplas avenidas. Pegar o sol na face, olhar vitrines, o vaivém do ser humano bem trajado e, em uma loja qualquer de discos, parar, fechar os olhos, ouvindo o som maravilhoso de La Cumparsita, de Gardel (preferida de meu pai), ou o bandoneon vibrante das baladas de Piazzolla, seus Invierno y Verano Porteños, sem falar da melódica Adiós Nonino, de encher os olhos.
Seguir, caminando, volando, cantarolando pelas ruas, aguardar o sinal abrir, as pessoas, o clássico no vestir, as belas construções, Santa Fé, Marcelo Alvear, a Peatonal Lavalle, mesmo a comercial Calle Florida. Volta e meia inala-se o aroma dos tantos cafés existentes, de suas empanadas, medialunas. Muito bom curtir as típicas mesinhas de calçada, toalhas xadrez, a senhora elegante tomando chá, lendo Clarín, um livro surrado.
(Fernando Gomes/Agência RBS) Livraria El Ateneo, na Avenida Santa Fé, era um antigo teatro
Paradisíaca para os que gostam de ler, descobrir preciosidades em seus recônditos sebos torna-se um prazer inenarrável, sem falar da livraria El Ateneo, na Calle Santa Fé, a segunda mais linda do mundo, ricamente decorada, com balcões e sacadas, adaptada que foi de um antigo teatro. Nos dias em que estivemos por lá, em Palermo (La Rural), acontecia a maior feira de livros de língua hispânica do mundo, a Feria Internacional del Libro. Um show literário à parte, em espaço gigantesco, com 45 mil metros quadrados em área coberta de pura cultura. Sem exageros, deve-se reservar uma tarde inteira e noite adentro para, sem pressa, tudo ver, folhear, bisbilhotar e comprar, pois os preços são ótimos.
Lugares imperdíveis
Há os que dizem que muito do glamour de Buenos Aires se perdeu com o tempo. Como costuma acontecer com as grandes cidades, a segurança requer um pouco mais de atenção, mas o centrão é seguro, bem policiado. As ecléticas construções se mantêm intactas. Cabildo, na praça central, e o antigo prédio das Obras Sanitárias de La Nación, este na Avenida Córdoba, são imperdíveis.
Recoleta, Caminito, Plaza San Martin, de Mayo e Palermo Verde não podem deixar de ser visitados. Shows de tango em diversos locais. É imperdível um final de tarde em Puerto Madero, sua Puente de La Mujer, navio museu Sarmiento atracado, iluminado e jantar à luz de velas. Depois pegar um táxi e, em questão de minutos, parecendo retroceder um século no tempo, visitar San Telmo, as ruas calçadas com pedras que refletem a luz das luminárias, a histórica praça central Dorrego e, nas mesinhas ao ar livre, rodeada de bares e antiquários, sentar, ouvir bandas de jazz, tangos e grupos folclóricos com flautas e batuques. Ótimo momento para uma jarra transbordante da boa cerveja Quilmes ou dos excelentes espumantes "criollos" ou os ótimos vinhos de Mendoza. Aos domingos, nessa mesma praça, acontece a tradicional Feira de Antiguidades.
(Fernando Gomes/Agência RBS) A Calle Florida sempre está movimentada
Calle Florida, Avenida 9 de Julio e parte de Santa Fé estão em obras, fato um pouco incômodo, além das insistentes ofertas de "cambio, cambio... dólar, reales" frente à moeda local desvalorizada. Manifestações políticas também podem ocorrer a qualquer momento, em qualquer lugar. Mas sem problemas, é só fazer um desvio entre as tantas opções no quadriculado de ruas centrais.
Garimpar, o que turista muito faz, é outra ótima opção na capital portenha. Avenida de Mayo, sapatos, botas, roupas baratas no Onze, Palermo, outlets na Córdova, aproveitando os cafés e ótimos restaurantes que existem por todos os lados - descubra o seu - servindo suculentos bifes de chorizo, papas fritas e o emblemático tinto Malbec.
Não é uma opção para todos, mas a chique Recoleta com seus apartamentos de luxo, cafés e restaurantes sofisticados também é "dona" do famoso cemitério La Recoleta. É o mais antigo e aristocrático. Conhecê-lo e seus ricos mausoléus é ver passar a história da cidade. Em seus quase seis hectares estão sepultados heróis da Independência, presidentes da República, militares, cientistas, artistas e Evita Perón. Perón, o marido, tem seu mausoléu em São Vicente, terra natal, 50 quilômetros ao sul da capital. O maior cemitério da América Latina, no entanto, é o de Chacarita, onde descansam os geniais Carlos Gardel e Piazzolla.
"Viajar é investir em felicidade." Viver a turística Buenos Aires é fazer jus ao ditado.