- Para onde é que vocês vão, mesmo?
- Vamos a Salta.
- Salta! Onde é isso? O que é que tem lá?
Pois então, agora que voltamos de lá, trouxemos alguma coisa para contar e mostrar daquilo que queríamos ver. Nosso interesse por conhecer o noroeste argentino surgiu há dois anos, quando recebi um e-mail com imagens espetaculares resultantes de antigos fenômenos geológicos, expondo as mudanças que as forças da natureza podem operar ao longo dos milênios
Quem vai a Salta não vai apenas para ver essa cidade e a província de mesmo nome. Nosso interesse principal se centrava na Quebrada de Humahuaca, 200 quilômetros ao norte, na província de Jujuy, divisa com a Bolívia. O segundo ponto fica na província de Salta (ao sul da capital). São os chamados Valles Calchquies. Nessa região, localiza-se a Quebrada de Las Conchas e a cidade de Cafayate, região produtora de excelentes vinhos.
Gentil e a mulher, Helena, posam para foto na Quebrada de las Conchas, província de Salta (fotos: Arquivo Pessoal)
Salta é um polo regional no noroeste da Argentina, a partir do qual se pode visitar os locais de interesse (que não são poucos) e que se situam bastante próximos. A cidade, cuja população regula com a de Florianópolis, tem história, tradição, folclore, culinária, música nativista e arquitetura colonial marcantes. Entretanto, os edifícios são raros, por causa dos sismos. Em compensação, preserva casarões com sacadas e casas antigas construídas em adobe.
A cozinha saltenha se destaca pela variedade. O consumo de milho, nas mais diversas formas, reflete a descendência indígena da população. Humitas, tamales e locro são pratos populares, à base de milho. O cabrito, preparado de diversas maneiras também é prato muito comum, sem falar em coelho e nos incomparáveis lomo e bife de chorizo, tradicionais bifes grelhados argentinos.
Tradições gaúchas
A Praça 9 de Julho marca o coração da cidade. Ali se encontra o Cabildo, a catedral e outras construções de interesse histórico.
O denominado Museu de Alta Montanha exibe, preservadas sob temperatura controlada, múmias de crianças oferecidas em sacrifício pelos incas a suas divindades. O Museu Histórico do Norte funciona no Cabildo - construção colonial de 1780 restaurada e parcialmente reconstruída e que era a sede da administração colonial. Nele, há muito do passado pré-colombiano (urnas funerárias, utensílios primitivos, amostras de tecidos etc.) e do passado colonial. Chama a atenção uma bela coleção de carruagens.
A cidade se encontra junto à pré-cordilheira, à entrada de extenso e fértil Vale de Lerma, que deve seu nome ao fundador da cidade, Hernando de Lerma. Foi fundada em 1582, a mando da coroa espanhola que queria estabelecer um ponto de apoio entre o vice-reinado Peru e o de Buenos Aires. Experimentou grande prosperidade no período colonial, quando abastecia de mulas e alimentos a cidade de Potosí (Bolívia), que foi no século 17 a maior produtora de prata e a mais rica cidade do mundo, além de ser a segunda em população (atrás apenas de Paris).
A música que lá se ouve é basicamente nativista. E as tradições gaúchas são preservadas. Diria que o saltenho é mais gaúcho que o povo rio-grandense.
* Auditor de finanças públicas aposentado, 78 anos, hoje morador de Florianópolis
A Quebrada de Humahuaca, 200 quilômetros ao norte de Salta, na província de Jujuy, é a principal atração da região (foto: Destino Argentina / Divulgação)
Quebrada de Humahuaca
Encontramos muitos europeus, americanos e canadenses que tinham como objetivo visitar a Quebrada de Humahuaca - um vale estreito e profundo situado ao norte de Salta, na província de Jujuy. Declarado pela Unesco Patrimônio Natural e Cultural da Humanidade, é uma combinação maravilhosa de paisagens, pueblos e cidades que conservam muitos vestígios pré-colombianos e coloniais e cujos habitantes levam um estilo de vida muito semelhante ao de seus ancestrais.
Algumas cidades que visitamos: Purmamarca, Tilcara, Humahuaca e Urquia. É muita beleza!
Em Urquia, uma minúscula aldeia, visitamos uma pequena igreja cujo padroeiro é São Francisco de Paula. Construída em adobe, tem um magnífico altar talhado em madeira e foleado a ouro. O teto é de cardon, aqueles enormes cactus com os braços erguidos. Segundo nos foi explicado, eles só têm utilidade na construção (substituindo a madeira) se morrerem naturalmente. Não adiante cortar verde.
O grande interesse que desperta a igreja de Urquia se deve a seu patrimônio: oito quadros pintados por artistas cusquenhos que representam anjos vestidos como militares espanhóis do século 17. O rei da Espanha Carlos II proibira o povo de usar vestes coloridas - privilégio da nobreza. A única exceção era para os militares, que passaram a caprichar no colorido. Imagina-se que essas pinturas, muito em voga na época, surgiram da impossibilidade de os nativos não saberem como seria um anjo (e quem é que já viu algum?).
Echart, uma das bodegas visitadas em Cafayate, que se destaca pelos bons vinhos de altitude
A saborosa Cafayate e Quebrada de las Conchas
Cafayate já é uma boa razão para ir a Salta. Situada em um vale de altitude (1.683 metros), a menos de 200 quilômetros ao sul da capital, é mais fresca e mais seca. Firmou-se como importante região vinícola da Argentina, produzindo excelentes vinhos de altitude. É famosa pelo branco torrontes que sai de seus vinhedos. No caminho entre Salta e Cafayate, situa-se a Quebrada de las Conchas, reserva natural de valor paisagístico único e formações geológicas incomuns.
Cafayate é pequena (cerca de 15 mil habitantes), interiorana, com sua praça central rodeada de restaurantes e sua catedral. Grande parte das bodegas se situa dentro da cidade. As uvas são colhidas nos arredores e ali levadas para vinificação. As visitas podem ser feitas a pé, de bicicletas ou em táxi. São gratuitas e independem de grupos. Em horários preestabelecidos, um guia faz uma orientação e nos oferece uma porção de vinho para degustação.
Alugamos um táxi para o período das 10h às 15h e visitamos algumas bodegas fora da cidade: Echart, Finca de Las Nubes (onde almoçamos) e São Pedro de Yacochuya. A localização, junto a paredões escarpados, o silêncio, a tranquilidade do lugar e a vista que se tem lá de cima são uma experiência única: a pequena cidade, parreirais por toda parte e, ao fundo, as cores avermelhadas da Quebrada de las Conchas.
Vale a pena uma visita ao Museo de La Vid y el Vino, instalado em uma antiga bodega. Outro que vale a pena visitar é um museu Arqueológico Regional Rodolfo Bravo - particular. Tem um enorme e variado acervo, porém lhe falta organização, uma vez que está nas mãos da família do colecionador, que é falecido. A própria viúva abre a porta e acompanha os visitantes que lá aparecem.
O flagrante da sesta coletiva em banco da praça 9 de Julio, em Salta
A instituição da soneca
Em Salta e, segundo nos informaram, em todo o norte argentino, a sesta é uma instituição respeitada. Os horários a ela se moldam. Comércio, bancos, Mercado Público, igrejas, repartições públicas paralisam sua atividades entre as 14h e as 17h. Apenas ficam abertos os locais onde se come ou bebe e algumas lojas voltadas para o turismo.
O sol é muito quente. Então, aguardamos até as 16h e saímos para caminhar, em direção ao centro, Praça 9 de Julio, coração da cidade. Compartilhamos um banco à sombra das árvores com um cidadão de meia-idade. Dez a 12 metros à nossa frente, um grupo de moças (colegas de serviço, talvez) tentando se acomodar em outro banco, com a evidente intenção de tirar um cochilo, uma com a cabeça já debruçada sobre um braço no encosto do banco.
Distraído em minha prosa, quase perdi a cena que tinha se armado no banco à nossa frente, não fosse um cutucão da Helena, minha mulher. Cautelosamente, tirei do bolso a câmera. Liguei, sem que meu vizinho percebesse, consegui um zoom moderado e cliquei, disfarçadamente. Não tenho dúvida de que foi o melhor flagrante de todas as minhas experiências com fotografia.
De repente, a cena se desfaz. Uma estica os braços e boceja. Outra fixa o vazio, meio apatetada, e uma terceira ajeita o cabelo. O quarteto se espalha, cada qual atrás de seus afazeres.
A cidade retoma seu ritmo. O sino da catedral, precedido de uma bela melodia, dá cinco badaladas (eletrônicas).