Nós cuidávamos da panela, alimentando o fogo que a aquecia com qualquer graveto úmido e retorcido que pudéssemos encontrar na tundra desértica que nos rodeava - mas, ainda assim, a água não fervia.
O purificador de água ultravioleta havia acabado com o segundo e último jogo de pilhas, e tínhamos descoberto que o filtro mecânico estava entupido. Ainda era a metade de nossa jornada de 12 dias pelo rio Snake, no território de Yukon, e encarávamos a possibilidade de passar várias horas por dia fervendo água para beber. Foi Mike que finalmente propôs a alternativa mais óbvia.
_Por que não bebemos direto do rio?
O Snake é um dos três majestosos rios navegáveis - juntamente com os rios Wind e Bonnet Plume - cujas águas correm ao norte do rio Peel, em direção ao Oceano Ártico. A bacia do Peel é famosa pela ausência de estradas, desenvolvimento e ocupações humanas em uma área maior do que o estado de West Virginia. Nos 48 estados americanos do continente, o mais longe que se pode chegar de uma estrada é 35 quilômetros em uma das extremidades de Yellowstone, mas nós estávamos a 160 quilômetros da estrada de terra mais próxima.
Então nós bebemos a água do rio, mergulhando as garrafas na correnteza e levando-as diretamente aos nossos lábios. A falta de um processo intermediário pareceu estranha depois de anos purificando cuidadosamente a água em nossas viagens ao interior: algo ao mesmo tempo transgressor e libertador, como nadar pelado. Depois de alguns goles temerosos, engoli tudo o que estava na garrafa.
Entretanto, desafios mais amedrontadores do que pilhas descarregadas nos aguardavam pela frente.
Meus amigos Mike Wilson, Tim Falconer, Steve Watt e eu viajamos muito para chegar até esse sertão intocado. Primeiro, voamos até Whitehorse, a capital do território de Yukon. Em seguida, um motorista nos levou com nossas canoas alugadas até uma remota base de hidroaviões cinco horas ao norte; fizemos um voo de 90 minutos até a cabeceira do rio Snake, no alto das montanhas Mackenzie. Harry, o piloto, voou baixo para nos mostrar o rio - uma das margens acabava em um penhasco com vista para os canais que se contorciam através da tundra - antes de fazer a volta em um pequeno lago que ficava a um quilômetro e meio de onde nos deixou.
Durante o voo, passamos pelos acampamentos de diversos garimpeiros. Mais de cem anos depois da febre do ouro de Klondike, o espírito garimpeiro ainda traz vida a Yukon. A falta de ouro foi o que manteve o Peel intocado por tanto tempo - mas com o altíssimo preço dos minerais e com o aquecimento global, uma nova geração de mineradores e escavadores está disposta a tirar proveito dos depósitos minerais e de combustíveis fósseis da região.
Em fevereiro, o governo do território rejeitou uma recomendação da comissão de planejamento para proteger 80 por cento da bacia do Peel, pois a considerou excessivamente restritiva. Por enquanto, o futuro do Peel é incerto - por essa razão, nós decidimos explorar um dos últimos rincões verdadeiramente selvagens da América do Norte antes que seja tarde demais.
Quando os últimos ecos do hidroavião desapareceram do horizonte, levantamos acampamento em uma clareira na beira do rio e uma chuva fina começou a cair. Picos cobertos de neve se debruçavam sobre nós em todas as direções; o terreno baixo estava repleto de arbustos de salgueiro com pouco mais de um metro de altura. Nós usamos líquen para acender uma chama fraca sobre uma pilha de gravetos para grelhar nossos bifes.
Na manhã seguinte, carregamos nosso equipamento pela tundra e empurramos as canoas até o rio pela primeira vez. Diferentemente dos rios com corredeiras e áreas planas com os quais estamos acostumados, o Snake desce de uma altura de 1.220 metros, sem nenhuma cascata, ou qualquer parte de difícil navegação no caminho. A correnteza leva as canoas a uma velocidade constante de cerca de 16 quilômetros por hora - e uma vez que você aperte o "play", a única maneira de pausar é encontrando um redemoinho próximo à margem, onde possa entrar com a canoa.
O rugido da correnteza nos ensurdecia à medida que descíamos pelo rio e éramos sacudidos pelas ondas que atingiam as laterais da canoa e nos encharcavam. Já havíamos parado para esvaziar as canoas três vezes e, quando o rio se tornou estreito, ziguezagueando por um desfiladeiro, quase aconteceu um desastre. Perto de um canto apertado, nós afundamos novamente - mas antes de podermos ir até a margem para nos secar, fomos engolidos pela próxima corredeira e emborcamos. De repente, Mike e eu nos encontramos nadando desesperadamente contra a correnteza até as pedras da margem, cada um agarrado em um remo, enquanto nossa canoa era levada pelo rio.
Nossa salvação: a canoa ficou presa entre algumas pedras no meio do rio e conseguimos recuperá-la. Ela ficou presa no ângulo certo para que a força da água não a dobrasse ao meio nas pedras, como uma lata de refrigerante. Quando conseguimos desvirar a canoa, recuperar nossos pertences e encontrar um local para acampar, já passava das 19h00. Demorou um dia inteiro para cobrir os primeiros oito quilômetros da viagem de 280 quilômetros.
Não remamos para lugar nenhum no dia seguinte. Ao invés disso, cuidamos dos machucados e secamos as roupas ensopadas. No local onde as águas claras de um riacho se juntavam com o fluxo turquesa do rio principal, montamos as varas de pescar e apanhamos meia dúzia de peixes para o jantar - brilhantes tímalos do Ártico e uma truta Dolly Varden. Durante o dia, nós nos perguntamos em silêncio se havíamos ido longe demais com aquela aventura.
Os ânimos melhoraram na manhã seguinte. O céu estava azul e navegamos por quilômetros sem maiores problemas, então começamos a relaxar e aproveitar a vista. Montanhas em ambos os lados do rio formavam um corredor que se estendia até ao horizonte. No alto das colinas rochosas avistamos carneiros-de-dall, e uma águia americana planava no céu.
Naquela noite, acampamos na desembocadura de um riacho cujas águas eram brancas e opacas como leite integral, coloridas por sedimentos de um maciço de calcário a oeste. Descemos até encontrar desgrenhados abetos negros intercalados com as finas faias que agora cobriam as margens do rio e nos forneciam o combustível necessário para fazermos uma fogueira crepitante - embora as chamas parecessem monótonas e sem vida em comparação com a luz brilhante do sol da meia-noite.
Durante a semana seguinte, nós viajamos a um ritmo agradável. O rio fluía tão rapidamente que só precisávamos remar durante três horas por dia, o que nos permitia passar as manhãs pescando preguiçosamente e explorando as cordilheiras e os vales nos arredores dos acampamentos. Observamos um castor e uma marta atravessarem o rio e recolhemos pedras vermelhas e brilhantes nas margens de cascalho - pedaços de hematita que denunciavam a presença de um dos maiores depósitos de ferro do mundo, cujos direitos pertencem à Chevron.
Por razões práticas e ecológicas, as fogueiras nas regiões selvagens de Yukon são deixadas acesas, a menos que estejam próximas a assentamentos - uma política que, apesar de sensata, nos pareceu inquietante quando avistamos as nuvens de fumaça em nosso último dia de viagem. À medida que o dia passava, nos aproximávamos mais e mais da fumaça, até que finalmente desembarcamos a cerca de um quilômetro de nosso destino final. O encontro dos rios Snake e Peel, onde devíamos ser resgatados por um hidroavião na manha seguinte, estava em chamas.
Em outras partes do Canadá, muitos rios "selvagens" são cercados por uma fileira de árvores como poucas centenas de metros de espessura. Não muito longe da margem, é possível encontrar áreas desmatadas e estradas abertas por lenhadores.
Não importa a que altura do Snake estivéssemos, eu não via mais do que vales e serras. Era inebriante escolher um ponto no horizonte e ficar imaginando: será que algum ser humano já esteve ali? Entretanto, à medida que o cheiro de fumaça nos enchia as narinas, aquele lugar também parecia extremamente solitário.
Mike pegou o telefone via satélite na mochila e ligou para o piloto do hidroavião. Quando ele descreveu a situação, eu ouvi o que parecia ser uma gargalhada do outro lado da linha.
_Está pegando fogo há 10 dias? _ disse Mike _ Oh... Acho que nos encontramos amanhã, então.
Mais tranquilos, remamos até o ponto de encontro e montamos as barracas pela última vez. No céu, o sol, a fumaça e as nuvens se misturavam em uma névoa vermelha pós-apocalíptica. De vez em quando, avalanches de pedregulhos caíam na água, à medida que a correnteza erodia um penhasco ao nosso lado; na margem oposta, chamas bruxuleavam a quase um quilômetro de distância. Pouco antes da meia noite, o sol se escondeu atrás das montanhas, mas sua luz continuou a brilhar durante a noite toda.