- Você não acredita em Deus? Não importa - diz o senhor Rivas. - Mas faça um pedido, porque a espiritualidade em Quito é excepcional.
Rivas é um guia que se especializou em caminhadas turísticas na Quito histórica, no Equador. Quitenho de uma nobre família de 400 anos, ele tem permissão para estar dentro e fora de dezenas de domos de igrejas que fizeram de Quito a cidade colonial mais extraordinária da América Latina. Ele observa o local com sua gravata de seda e seu chapéu Panamá.
*Kapka Kassabova é uma escritora búlgara que vive na Escócia.
Parte 1: Vertigem
Senhor Rivas me leva aonde nenhum turista ou morador local pode ir. Nós estamos dentro da cúpula da igreja de São Francisco. Existe uma lenda de que São Francisco foi construída em uma noite, depois que um morador chamado Cantuña fez um pacto com o diabo. O diabo, então, construiu tudo até a última pedra, mas Cantuña deu sua alma em troca. Pela manhã, quando o diabo foi buscar a alma de Cantuña, o malandro tinha removido uma pedra da cúpula. O pôr do sol espalha o dourado por Quito.
Do topo de uma das sete colinas sagradas para os incas, até a grande Virgem da cidade parece estar pegando fogo. Ela tem 45 metros, asas, é feita de alumínio e, se você quiser ver o rosto bem de perto - impossível a menos que se suba por dentro dela, o que eu fiz -, parece que a palavra latina " misericórdia" foi inventada por ela.
Estamos agora dentro de La Compañia, a igreja jesuíta psicodelicamente ornada com um sol gigantesco na cúpula. Em pouco tempo, estamos no telhado, e Rivas explica como a espinha de Quito é o vulcão Pichincha ( que entrou em erupção de modo espetacular em 1999 e cobriu a cidade de cinzas), e como as igrejas da cidade estão alinhadas. Examinamos a linha do horizonte de cúpulas, colinas e torres adornadas pelo sol.
Parte 2: Lendas
Em seguida, estamos em São Augustin, onde dois monges vivem em silêncio. Eu nunca esquecerei desta igreja, porque aqui vejo a personificação da agonia e do êxtase na chocante escultura de escala natural de um Jesus pós-crucificação, criada pelo mítico artista de Quito Miguel Santiago.
Ele era um perfeccionista: para esculpi-la, reza a lenda, Santiago matou um de seus alunos. Dentro do monastério dominicano de Santo Domingo, nós deslizamos para os bastidores da Capela do Rosário. Tudo é ouro, vermelho - como o sangue de Cristo - e espelhos. Uma virgem de tamanho natural de cor púrpura segura uma corrente com pérolas enormes.
- Ninguém vai atrás da virgem, exceto nós - sussura Rivas, empurrando uma pequena porta pesando uma tonelada.
Parte 3: Misercórdia
Nós deslizamos por trás da Virgem e, por um momento, juro que seu cabelo se agita por um sopro invisível. No vasto salão da igreja, dois jovens começam a tocar velhos violões: é hora da missa da tarde. Estamos agora no telhado, mas posso escutar os humildes andinos cantando um melancólico refrão no térreo.
As vozes parecem vir de lugar nenhum: "você será nossa luz/ você vai nos salvar/ você nos dará vida". Minha garganta aperta como se tivesse um caroço do tamanho vulcão de Pichincha. Sinto uma imensa tristeza e uma imensa alegria de estar aqui, no coração andino da experiência humana. Não sou nada pura, mas talvez seja isso que a misericórdia signifique.