Uma viagem sempre guarda surpresas, qualquer um que já cruzou uma fronteira sabe. Mas em 2008, durante um passeio de poucos dias por Buenos Aires, eu e a Débora, minha mulher, comprovamos o quão insólitas essas surpresas podem ser. Resumo: saímos para circular pelo célebre Puerto Madero e voltamos para o hotel com uma terceira pessoa. Pequeno adendo ao resumo: a pessoa estava morta.
Era um meio de tarde ventoso porém ensolarado, e ainda mais luminoso às proximidades do Rio da Prata. Colocamos nossas melhores roupas, que não eram grande coisa, e saímos a percorrer o porto.
Depois de bater pé ao longo de uma das margens, decidimos atravessar uma pequena ponte até a margem oposta. Nos aproximávamos da passagem quando percebemos duas mulheres vestidas de preto desde a ponta dos sapatos até o lenço sobre a cabeça. Elas estavam em um lado da ponte, semicurvadas sobre a proteção lateral, e nós no outro. Parecia que brigavam.
Fomos atrasando o passo, em busca de uma possível explicação. Descobrimos que não brigavam, choravam baixinho. Já estávamos quase passando pela dupla, que estava de costas para nós, quando a mais velha puxou um vaso de dentro do casaco preto. Tirou a tampa e, num movimento brusco, despejou seu conteúdo sobre as águas nem tão prateadas do canal. Era um pó finíssimo e acinzentado que, por um curioso fenômeno, foi em parte soprado por uma rajada de vento para baixo da ponte, para o outro lado do vão e, depois disso, para cima. Quando estava mais ou menos sobre as nossas cabeças, finalmente caiu.
As mulheres nem perceberam, mas eu e a Débora nos olhamos, depois de tirar um pouco o pó do rosto, e finalmente entendemos no que havíamos nos metido.
- Ah, não... - suspirou a Débora.
Os argentinos devem amar muito o seu porto, porque um deles, ou uma delas, quis que suas cinzas fossem jogadas no canal para depois mergulharem no Rio da Prata. Talvez não esperasse que acabassem também sobre dois pobres passantes. Enquanto as mulheres de preto se abraçavam e davam " adiós, adiós, adióóós!", voltamos o mais rapidamente possível para o hotel.
O argentino, ou parte dele, em vez de cair graciosamente nas águas plácidas de Puerto Madero, escoou pelo ralo de um banheiro de hotel bem meia-boca em seu último " adiós". A verdade é que não dá para prever tudo _ nem após a morte, muito menos em uma viagem.