A atualização do plano diretor de Xangri-lá, no Litoral Norte, é assunto em boa parte da cidade. Bastou a reportagem de GZH chegar ao quarteirão à beira-mar onde ficava o antigo Hotel Termas, demolido e cercado por tapumes de uma empreiteira, que um vizinho já gritou:
— Que bom que vocês vieram. Sobe aqui.
O morador em questão é o representante comercial Luiz Martins Costa Pinto, 60 anos, que, desde o início dos anos 2000, vive com a esposa no Condomínio Edifício Xangri-lá. Pacato, o residencial tem 54 apartamentos distribuídos em três andares. A ligação é feita por corredores em tons pastéis e círculos de ventilação abertos no concreto, além de sacadas com vista para palmeiras e o mar. No pátio, há chinelos soltos e chuveiros de canos de PVC instalados sobre a grama. Quem está nas cadeiras de praia, aproveita a brisa carregada pelo barulho das ondas. O vento que ameniza o calor, temem os residentes, poderá ser abafado por um prédio de até 14 andares no terreno limítrofe, uma possibilidade caso sejam atualizadas as diretrizes de construção no município.
— Já penso em comprar outra coisa. Não vou viver com uma torre de 14 andares aqui do lado, vai acabar com a praia — acrescenta o morador.
Ao circular por Xangri-lá, é fácil reparar as diferenças com a vizinha Capão da Canoa: há preservação de vias com paralelepípedos, contra o asfalto proeminente em Capão. A maioria dos terrenos tem casas ou sobrados, e não edifícios em sequência. Quem é contra o novo plano diretor afirma que tais características dão um clima “mais familiar”, contra um “caráter cosmopolita” do estilo vertical em sobreposição ao horizontal.
O plano vigente é de 2008 e foi atualizado, pela última vez, em 2015, segundo a prefeitura. Em linhas gerais, estabelece em sete pavimentos o teto máximo, em certas áreas dos balneários. De acordo com o prefeito Celso Bassani Barbosa, a alteração que irá dobrar a altura permitida afeta somente o trecho de algumas ruas localizadas a oeste da Avenida Paraguassú - quadras mais distantes do mar, no sentido para a Serra. No entanto, o próprio documento, redigido e apresentado pelo Executivo, entrega duas áreas “especiais” a poucos metros da faixa de areia: o já citado antigo Hotel Termas e a também extinta colônia de férias do Banrisul, em Rainha do Mar.
— Tem muita distorção do assunto, quando se fala de prédios altos na cidade. Teremos prédios onde antes já tinham prédios, e depende do tamanho do terreno para aprovar a construção — defende o prefeito, listando os extintos edifícios, mesmo que mais baixos do que os futuros.
GZH teve acesso à integra do projeto, apresentado à comunidade e alterado conforme as discussões avançaram. Em 58 páginas, são descritas as diferentes zonas, perfil das construções e do tipo de estabelecimento, de residencial, comercial a áreas com mais de uma utilidade. A altura máxima é fixada em 55 metros ou 14 pavimentos além da cobertura.
A verticalização passível de acontecer com a aprovação é acompanhada de outra preocupação de quem é contrário à proposta: o aumento populacional dos novos condomínios terá a mesma proporção de avanço na capacidade de tratamento de esgoto? Segundo o arquiteto e doutor em Urbanismo Benamy Turkienicz, autor de um diagnóstico sobre a viabilidade de uma mudança da planta de Xangri-lá, essa poluição da camada de água subterrânea já ocorre de maneira desordenada e corre risco de não ser contida.
— Já existem claros sinais de contaminação do lençol freático por coliformes fecais, principalmente por causa das fossas rudimentares — destacou Turkienicz, no início dos debates, a GZH.
O prefeito afirma que irá atrás de uma nova companhia para melhorar o saneamento, pois existem, atualmente, 16 terrenos à espera de aprovação do novo plano. O objetivo das empreiteiras é erguer milhares de casas, em condomínios horizontais, nesses espaços.
— Nada será aprovado se não tiver uma solução de esgoto. Estamos trabalhando para tirar esgoto e água da Corsan e fazer um processo licitatório, uma empresa vencedora com cronograma de obras e resolver esse problema do esgoto.
Arquitetos pedem mais detalhes
Criada em 1963, a colônia de férias Banrimar ocupava o que hoje virou mato de um lado e uma base de cimento mal acabado na outra metade. O resort que recebeu funcionários do Banrisul até 2018 foi vendido, a estrutura derrubada e a comunidade comenta que pode sediar um espigão com sombra na praia.
— Um prédio aqui vai acabar com o clima de famílias. Veraneio desde que eu era um bebê nessa casa — relembra Valéria Kayser De Nardi, 55 anos, enquanto toma chimarrão na varanda.
— Eu não vou dizer que sou contra a cidade crescer, pode ser até que valorize os terrenos com um prédio novo, mas dá um certo medo — pondera o bancário aposentado Afonso Rezende Jr., 64 anos, que diz ter passado boas férias no retiro do banco.
De fato, não há um estudo prévio sobre a projeção da sombra, caso a construtora decida chegar ao topo de 55 metros em sua edificação. Tal demanda partirá da própria empresa, segundo o secretário municipal de planejamento, Antônio Carvalho.
— Quando for um projeto especial, o empreendimento deverá apresentar estudo de sombreamento — afirma o secretário.
A imprevisibilidade levou o Instituto dos Arquitetos do Brasil no Rio Grande do Sul (IAB-RS) a redigir um relatório técnico e uma série de apontamentos. O parecer técnico é do último dia 13 de janeiro. No documento, são apresentadas dúvidas sobre como serão tratadas as obras próximas às dunas, uma restrição que não está clara, de acordo com os arquitetos. Há ainda um dado que chama atenção no relatório, que dá conta das características do território de Xangri-lá: 47% de lagoas, 32% de campos e 21% de balneários.
Bruna Bergamaschi Tavares, co-presidente do IAB-RS, afirma que a construção de um número considerável de condomínios fechados interfere no traçado de uso comum, limitando o acesso em ruas exclusivas.
— Precisamos pensar nos precedentes que podem ser criados, e se esse tipo de ocupação interessa somente à sazonalidade ligada ao turismo e ao veraneio, mas não interessa aos moradores — explica a arquiteta.
Abaixo-assinado e audiências públicas
Um abaixo-assinado online foi criado para alertar o que é chamado de “uma descaracterização do balneário”. A página define o desejo como “infraestrutura sim, verticalização não”. Na manhã deste sábado (21), havia 14,2 mil assinaturas virtuais.
Nesta sexta-feira (20), foi realizada a terceira audiência pública para debates sobre a proposição. O ato começou às 16h, no plenário da Câmara de Vereadores, e reuniu em torno de 50 pessoas. Como nas demais sessões, o início foi marcado por uma extensa leitura do projeto - cerca de cinco horas de exposição. Moradores levaram uma faixa, com os dizeres “Saneamento, JÁ! Verticalização, NÃO!”.
— Tem que ter desenvolvimento, sim, mas sustentável. Tem um passível agredido imenso já, e não há o mínimo de saneamento — afirma o técnico ambiental Sérgio Roberto Oliveira Estigarribia, presidente da Associação de Moradores e Veranistas de Xangri-Lá (AMX).
Já à noite, os inscritos puderam levar suas ponderações. Enquanto um lado defendia sua posição, havia aplausos de apoio ou vaias, em um clima de certa inimizade.
A maioria, na Câmara, era contrária à aprovação do novo marco. Havia um grupo menor, vestindo camisetas com dizeres favoráveis ao projeto
— A gente tá precisando, o município está crescendo e precisa se atualizar. Está faltando comércio e muita coisa. A construção gera empregos, com mais condomínio gera mais renda e mais veranista — contrapõe o corretor Cássio Jardim Alves, dono de uma imobiliária.
A sessão para apreciação do projeto pelos vereadores aconteceria na próxima segunda-feira (23), mas será agendada após uma quarta audiência com a comunidade.
Torres
Em Torres, a atualização do plano diretor levantou polêmicas semelhantes, em especial sobre o impacto no sol que incide sobre a faixa de areia. O MPF marcou uma audiência de conciliação para março, e até lá, a proposta não pode ser votada pela Câmara Municipal.
O plano da cidade é de 1995, sem atualizações, segundo a prefeitura. A última audiência com moradores foi em 26 de julho de 2022.