Os guarda-vidas Mathias Aguinaldo Gomes, 21 anos, e John Albert, 34, acordam cedo todos os dias. Entre as segundas e quartas-feiras, porém, eles têm uma função que não tem nada a ver com ficar de olho nas pessoas dentro d’água. Nesses dias, o serviço também envolve praia e existe para ajudar os banhistas, mas com outra finalidade: às 6h ambos já estão com os pés às margens de algum trecho da costa de Florianópolis para coletar amostras d’água. O material recolhido é analisado por técnicos da Fundação do Meio Ambiente (Fatma) e o resultado determina se aquele ponto está ou não próprio para banho.
John se mantém em terra firme verificando dados sobre o vento, a temperatura do ar e a presença ou ausência de chuvas, enquanto Mathias entra na água vestido com bota e macacão impermeáveis. Cabe a ele coletar, em um pequeno frasco plástico, o líquido nos pontos previamente determinados, além de medir a temperatura da água. O passo seguinte é colocar o material em uma caixa térmica com gelo, mantida a aproximadamente 4ºC. O ritual se repete 25 vezes ao dia. Por fim, as amostras são levadas ao laboratório da Fatma, no bairro Saco Grande, para começar a análise propriamente dita. Apenas em Florianópolis, onde são investigados 75 pontos, a coleta é feita pelos bombeiros, que possuem um convênio com a Fatma.
Fora da Capital, o serviço nos 140 locais restantes é realizado por funcionários das coordenadorias regionais da fundação. O responsável técnico pelo laboratório da Fatma, Marlon Daniel da Silva, explica que a elaboração do relatório segue a resolução 274 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), de 29 de novembro de 2000. Os dois objetivos, diz, são: informar o banhista sobre as condições de balneabilidade para locais de "recreação de contato primário" e fornecer subsídios para que os entes públicos possam agir diante de cenários continuamente desfavoráveis.
– Trabalhamos em caráter preventivo, objetivando a saúde do usuário do balneário, a fim de que ele evite contato com essas águas consideradas impróprias. Se a água tem a bactéria Escherichia coli, potencialmente ela também pode apresentar outros organismos causadores de doenças. Além disso, esse relatório embasa um banco de dados que pode ser usado pelos agentes municipais para a tomada de decisão, com ações mitigadoras, evitando a chegada de esgoto aos pontos amostrados – diz Silva.
A realidade estadual era muito diferente quando a Fatma elaborou o primeiro relatório de balneabilidade, em 1976. O engenheiro sanitarista Afonso Veiga Filho, então coordenador de projetos na antiga Secretaria de Estado da Tecnologia e Meio Ambiente (que daria origem à fundação), lembra que o foco do boletim inaugural foi Balneário Camboriú, que já na época insinuava a potência turística que iria se tornar. As análises detectaram uma série de pontos impróprios, em especial nas proximidades dos deságues de águas pluviais.
– O resultado foi que, enfim, fez-se a obra e implantou-se o sistema de esgoto na cidade. Também tirou-se as galerias de águas pluviais que desaguavam diretamente na praia – recorda o sanitarista, que, prestes a completar 79 anos, ainda é integrante da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária (Abes).
Desde os primórdios do relatório, Veiga conta que houve diversos aprimoramentos em sua elaboração. Além da análise em si, que ficou mais sofisticada, houve uma multiplicação dos pontos analisados, chegando aos 215 atuais – incluídos depois de um exame criterioso, segundo o gerente de análise da qualidade ambiental da Fatma, Oscar Vasquez Filho. De acordo com ele, o processo começa pelo pedido de alguma comunidade à prefeitura do município para que aquele reduto figure entre as áreas monitoradas. A partir daí, uma equipe vai ao local e faz um estudo técnico, que determina se o ponto deve ou não entrar no relatório.
Conforme estimativas da Fatma, aproximadamente R$ 1 milhão são gastos por ano no processo, sendo que pouco mais da metade apenas para a compra de insumos indispensáveis à tarefa.
Críticas
A adoção de uma metodologia sistemática quanto à balneabilidade não livra a Fatma de críticas. Sobretudo dos atores que acabam sendo mais cobrados pelos diagnósticos negativos: as prefeituras e a Casan. A principal queixa do superintendente de Saneamento e Habitação de Florianópolis, Lucas Arruda, é a respeito da periodicidade durante a temporada. Os resultados são válidos por uma semana, o que ele julga ser insuficiente durante o verão:
– Enquanto tiver esse prazo de sete dias, o relatório não atende nem a necessidade do banhista nem da prefeitura.
Outro fator que gera controvérsia é o uso das últimas cinco análises para determinar se o ponto está ou não próprio para banho. Arruda cita o caso de algumas praias de Florianópolis que sofreram uma alteração significativa na balneabilidade em função das chuvas frequentes no mês de janeiro. Como houve dois resultados negativos consecutivos, esses pontos devem permanecer impróprios até o Carnaval, mesmo que haja três pareceres seguidos com níveis inferiores a 800 bactérias Escherichia coli por 100 mililitros.
Tais ponderações têm feito a prefeitura pensar em implantar um sistema próprio de análise da qualidade da água durante a temporada, com periodicidade que pode chegar a até três coletas semanais. O serviço, planeja o superintendente, poderia ser realizado por laboratórios credenciados.
– É uma discussão que existe, sim. Especialmente nos locais de maior visitação. Se é para ser um indicador, que seja mais efetivo – afirma Arruda.
A Casan admite a pertinência desse serviço com a ressalva de que o enfoque “constante e insistente” nos relatórios gera uma percepção errônea sobre as condições do litoral de SC, cujos índices estão “na média brasileira e em geral, até melhores do que as demais praias do país”. “No mundo inteiro os relatórios de balneabilidade são apenas uma referência, já que reconhecidamente as chuvas alteram a condição de uma praia no dia da coleta da amostra”, disse em nota.
– A questão do esgoto influencia muito pouco, pelo menos em Florianópolis, porque as estações não despejam efluentes em áreas balneárias, e sim em regiões que vão mais para o interior. Talvez falte explicar que água de drenagem tem coliformes fecais, não necessariamente oriundos de um sistema de esgoto mal operado, mas do contexto urbano: muito adensamento e muita gente – avalia o engenheiro químico Alexandre Trevisan, da gerência de meio ambiente da Casan.
Quem também tem algumas restrições à forma como a Fatma lida com os relatórios é o presidente da Federação de Hotéis, Restaurantes, Bares e Similares do Estado de Santa Catarina (Fhoresc), Estanislau Bresolin. De acordo com ele, embora os boletins sejam importantes para dar “credibilidade ao destino” e para que o turista possa escolher uma praia não poluída, é preciso “ter cuidado com esse tipo de informação”.
– Analisar o mar depois de chover é um desperdício de tempo, pessoal e recursos. Bastaria colocar uma espécie de alerta permanente avisando que após um dia de chuva forte aquela praia estará imprópria para banho pelas próximas 24 horas – opina.
A Fatma se defende dizendo que segue uma resolução nacional e que não pode alterá-la, como nos critérios que determinam se um ponto está ou não impróprio. Sobre um aumento da periodicidade, Marlon Daniel da Silva diz que a fundação não tem condições de “multiplicar a sua capacidade” nem acha que isso seja necessário.
– Se eu vou semanalmente a um ponto e ele está sempre contaminado, isso significa que está chegando esgoto ao local. E trata-se de contaminação fecal recente – afirma.
Em relação às chuvas, Silva lembra que a Fatma já emite alertas para que os banhistas não entrem na água por 24 horas após precipitações pluviométricas, mas que esse fator não altera o trabalho.
Doenças
A análise feita pela Fatma detecta bactérias de trato gastrointestinal, explica o médico infectologista Pablo Sebastian, professor do curso de Medicina da Universidade do Vale do Itajaí (Univali). Portanto, as doenças mais comuns decorrentes do contato com a água contaminada são gastroenterites e intoxicações. Mas, alerta ele, há micro-organismos que também podem aparecer, como a salmonela e a shigella, que exigem atenção porque podem provocar enfermidades mais graves.
O médico menciona ainda a possibilidade de contrair hepatite A. Como muita gente nunca foi vacinada para preveni-la, o risco de ser infectado pelo vírus dela em águas inadequadas para banho não deve ser desconsiderado. Sem falar em conjuntivites ou verminoses que não vão matar ninguém, mas no mínimo irão privar a vítima de alguns dias de férias.
– Às vezes, a pessoa pensa que está a salvo por não estar nadando no mar impróprio, mas se ela colocar a mão na água e depois levá-la à boca ou aos olhos, pode haver alguma contaminação – diz.
Segundo o relatório divulgado pela Fatma no dia 26 de janeiro, os oito pontos analisados em Canasvieiras, no Norte da Ilha, não estavam apropriados para banhos (o resultado se repetiu na última sexta-feira). A informação não alterou nem um pouco os planos do professor de Educação Física Leonardo Martin, 37 anos, de aproveitar cada momento da semana que iria passar em Florianópolis com a família. Vindos de Concepción, na Argentina, ele, a esposa e as duas filhas brincam na parte central da praia como se fossem imunes às bactérias encontradas.
– Vimos que estava imprópria, mas sabemos que o mar muda muito de um dia para outro e que nem toda a praia está poluída – explica o hermano.
No trecho em frente ao trapiche, o metalúrgico Adalmir Zardo, de Caxias do Sul (RS), é mais rigoroso. Em Florianópolis há uma semana, ele está desencantado com a qualidade da água, “muito suja”, na sua opinião – o que não impede que dê uns mergulhos.
– Da próxima vez que eu vier, vou procurar outro lugar. Provavelmente iremos para o Campeche – conta.
Tomara que ele escolha o ponto certo. Dos três analisados na praia que pretende frequentar na temporada seguinte, um está impróprio.