Numa das tantas crônicas do Luis Fernando Verissimo em que você, lá pelas tantas, sorri e pensa "puxa, é bem isso", um carioca e um gaúcho se encontram no Rio. Um implica com o outro nos mais variados temas. Lá pelas tantas, falam de futebol. O gaúcho defendia o futebol força, que tinha no volante Batista um símbolo. O carioca exaltava o futebol arte, cujo emblema só podia ser ele: Zico. Batista jogou no grande Inter da década de 1970, foi escolhido o melhor da posição na Copa da Argentina, em 1978 e, antes da Itália, saiu do Beira-Rio direto para o Grêmio, troca que convulsionou a Província de São Pedro. E o Zico? Bem, Zico é Zico. A discussão seguia na linha do espírito farroupilha e seus rigores elevados contra os prazeres da vida com samba no pé e bom-humor quando, a certa altura, o gaúcho descobre que o carioca, na verdade, era de Dom Pedrito. Morava no Rio há dois anos e chiava mais do que locomotiva no cio.
Minha relação com a praia é mais ou menos assim.
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Eu queria tê-la na minha vida como rotina, mas não podia. Durante um tempo, optei pela negação. Tinha meus motivos. Na adolescência, foi um inferno. Meus colegas no Colégio Rosário voltavam às aulas com a pele morena, arrancando suspiros das gurias e contando altas histórias de surfe e romances. Parte da minha vida escolar se deu em escola pública, completada na rede privada com louvável esforço financeiro dos meus pais. Não sobrava dinheiro para férias. Restava ficar em Porto Alegre. Entrava março branquelo, sem nada interessante para contar. Não sabia surfar e nem andar de skate. Ignorava as novas tendências. Não conhecia ninguém da Revista Fluir.
Um fracasso total.
Ainda bem que os metaleiros e roqueiros me acolhiam, o que garantia um grupo para andar nos corredores do Rosário. Morria de medo que meus colegas descobrissem a verdade. Enquanto eles colecionavam lindas garotas, eu emendava verões inteiros sem pegar nem gripe. Imaginava-os rolando nas areias com lindas loiras de biquíni, surpreendidos por aquelas ondas que lambem a areia. Tentei ideologizar, para me sentir melhor. De um lado, os ricos filhinhos de papai da escola privada. De outro, os filhos dos lutadores de classe média, ali infiltrados às custas da luta diária de suas famílias trabalhadoras. Nosso hino era Surfista Calhorda, dos Replicantes. Eles curtiam Engenheiros. Logo descobri que tinha surfista indo a show dos Replicantes. E jovens de classe média ouvindo Engenheiros. Nem todos os surfistas eram playboys, assim como havia muito proletário metido a besta.
Cresci, amadureci e, claro, fui à praia resolver minha paixão reprimida.
Sabe quando você é assaltado por lampejos de memória, assim do nada, e tudo é real ao ponto de ter cheiro, gosto e textura? Dos meus, muitos têm a ver com praia – ainda que nenhum na adolescência. O arroz com linguiça do David Coimbra, na casa da Praia Brava, alugada por uma horda de bárbaros em regime de vaquinha. O arroz com linguiça do David nos atribulados verões dos anos 1990 tinha dois objetivos: curar a ressaca da noite anterior e preparar a seguinte. A Simone se estabacando com a cara na porta de vidro na varanda dessa mesma casa, achando que não tinha nada na frente – e eu achando lindo: casei com ela, inclusive.
Graciolli, vulgo Professor Juninho, emergindo da escuridão, na areia, com bolsas térmicas cheias de cerveja sempre na hora exata da última latinha. Meu filho Pedrinho furando onda na Guarda do Embaú ou deslizando nas Dunas do Siriú, duas décadas depois. Eu, criança, no colo do meu pai, na Avenida Paraguassu, em Capão. Sinto agora mesmo a respiração no peito dele contra o meu, protegendo-me da chuvarada repentina. Não recordo de tamanha sensação de segurança. Bons tempos. Preciso urgentemente ir à praia, ler uma crônica do Verissimo ou encomendar um arroz com linguiça para o David.