No imaginário dos viajantes do asfalto, o ônibus que rasga o litoral gaúcho, parando de balneário em balneário não tem uma fama muito boa.
A linha interpraias, ou o famoso pinga-pinga, é, em 99% das vezes, caracterizado como uma viagem nada agradável com elementos pitorescos: ônibus velho sem ar-condicionado com poucas janelas, público exótico acompanhado de galinhas e um odor peculiar de salgadinhos artificiais.
Para descobrir o que é verdade e o que é visão distorcida da viagem, ZH embarcou em uma jornada de três horas e meia de duração que percorreu as praias de Tramandaí, Imbé, Mariluz, Albatroz, Santa Terezinha, Rainha do Mar, Xangri-lá, Atlântida, Capão da Canoa, Capão Novo, Arroio Teixeira, Curumim, Bom Jesus, Arroio do Sal, Areias Brancas, São Pedro, Rondinha, Praia Azul, Paraíso, Estrada Itapeva e Torres.
12h10min – Tramandaí
O mito do ônibus velho
Na rodoviária de Tramandaí, uma pequena fila se formava em torno da porta de um imponente ônibus da Unesul – derrubando o mito do ônibus caindo aos pedaços. Dentro do veículo, poltronas azuis estofadas, ambiente limpo e ar-condicionado.
Uma jovem de cabelos negros cortados na altura dos ombros foi uma das primeiras a garantir lugar no carro. Mal sentou na poltrona 13 e já abriu um livro no capítulo que estava marcado. A estudante de Direito Annelise Mendes Greff, 22 anos, parecia indiferente ao que se passava a sua volta. Logo nos primeiros minutos de viagem, uma dezena de páginas foi devorada. A jovem de Tramandaí pega o interpraias diariamente porque estagia na Justiça Federal em Capão da Canoa. Ela diz:
– Sempre pego o ônibus das 12h10min para chegar até a parada da Avenida Paraguassu em Capão. Há mais de um ano tenho essa rotina. Não acho a viagem tão ruim quanto falam.
Para passar o tempo e a monotonia, Annelise se refugia nos livros. Só no pinga-pinga, ao longo desse ano, já leu cinco. A primeira parada da viagem é em Imbé. Foi nela que subiu Felipe Lucas da Silva, 17 anos. O estudante estava preparado para uma longa viagem. Travesseiro, garrafa de água, celular e fones de ouvido eram as armas para aguentar as mais de duas horas até a casa do primo em Lagoa do Camboim, praia próxima a Arroio do Sal.
– Acho o pinga-pinga cansativo porque para em todas as prainhas. É preciso ter paciência e vir preparado para fazer o tempo passar mais rápido – ensina Felipe Lucas.
13h – Atlântida Sul
Estrada de terra, mas com o mar pela janela
Após uma hora de viagem, quem não está entretido com livros ou jogos de celular tenta se distrair em meio ao sacolejar potencializado pela estrada de terra do trecho. Quem mira a paisagem pela janela é presenteado por uma vista que não pode ser admirada da Estrada do Mar ou da BR-101. Ver o mar do conforto de uma poltrona e sob o ar-condicionado é um dos privilégios dos passageiros do pinga-pinga.
– Essa vista é muito bonita. Compensa a viagem – pontua Felipe Lucas.
Nessa parte da jornada, a fome bate para os passageiros que pularam o almoço. Foi de forma discreta que Clara Cavagnoli Mendes, 16 anos, abriu a bolsa e tirou um pote de paçoquinhas para enganar o apetite. Em férias, a estudante saiu de Mariluz, onde estava com o namorado, com destino a Rondinha, para encontrar a família.
– Faço esse trecho para voltar para a casa dos meus pais. A viagem é tranquila, só acho um pouco demorada. Com o balanço do ônibus, aproveito para dormir. Quando a fome chega, é preciso estar preparada – conta a jovem, entre uma paçoquinha e outra.
Este é o terceiro vídeo do projeto La Playa, que, nesta temporada de calor, apresenta um olhar diferente sobre o litoral do Rio Grande do Sul e o verão gaúcho.
13h10min – Rainha do Mar
Chapéu de palha e uma enxada
Na parada de tijolos brancos que fica no meio da estrada em Rainha do Mar, um homem com chapéu de palha e uma enxada adentrou o ônibus. Cristiano Lucas, 24 anos, saiu de Porto Alegre com o amigo Everton Pires, 23, para desbravar o litoral gaúcho rumo a Santa Catarina.
– Colocamos o pé na estrada e vamos subindo até Santa Catarina. É muito legal conhecer gente nova e poder viajar de praia em praia – afirma Everton.
Mas e a enxada?
– Trouxemos porque vamos fazendo bicos nas praias para financiar a jornada. Cortamos grama, capinamos. O que o veranista pedir, fazemos. O dinheiro serve para nos alimentarmos e conseguirmos viajar de ônibus – explica o rapaz com chapéu de caipira.
13h50min – Capão da Canoa
O choro da adolescente e o sono do bebê
Na poltrona 27, as lágrimas escorriam ininterruptamente – ainda que em silêncio – do rosto da menina que abanava para um casal na plataforma de embarque.
O choro de Vitória Evalt Maia, 15 anos, era por uma despedida. A estudante, que mora em Torres com os pais, estava triste por dizer adeus a sua irmã mais velha, de 24 anos, com a qual passou as férias de verão em Capão da Canoa.
– Somos muito próximas. Todos os anos, passo um mês na casa da minha irmã. Quando eu for mais velha, quero vir morar em Capão da Canoa também – diz Vitória, que só conseguiu secar as lágrimas 30 minutos depois.
Foi na rodoviária de Capão, também, que a pequena Lívia fez sua estreia no pinga-pinga. A menina de três meses estava no colo do pai, Patrick Silva, e só precisou de cinco minutos no balanço do ônibus para cair em sono profundo.
– Estamos indo para Arroio do Sal visitar a minha sogra. É a primeira vez da Lívia em um ônibus. Parece que ela está gostando – alivia-se Patrick.
14h10min – Curumim
Cobradora faz ida e volta no mesmo dia
A voz que anuncia as mais de 20 paradas do trajeto é de Gislaine Tristão Silvano, 36 anos. Sempre que um passageiro novo toma um lugar, ela vai até o cliente para indagar o destino e cobrar a passagem. O trecho entre Capão da Canoa e Arroio Teixeira sai por R$ 4,80.
A viagem de Tramandaí a Torres, R$ 22,90. Munida de uma impressora portátil, pendurada como uma bolsa, Gislaine digita em um smartphone a origem e o destino do veranista. Segundos depois, a passagem é impressa.
– A impressora facilita muito o trabalho, ainda mais com o sacolejar do carro. Os passageiros mais antigos dizem que, anos atrás, era tudo na mão, com lápis e bloco – conta Gislaine, que faz ida e volta do pinga-pinga no mesmo dia.
Um saudosista é o autônomo Ronaldo Veseli, 40, que percorre o trajeto há pelo menos 15 anos. Ele rememora com um sorriso a época em que o interpraias era sinônimo de inferno sobre rodas:
– Antigamente, era um calorão. Tinha de abrir janelas que nunca davam conta do suador dos passageiros. Agora, o ônibus é um luxo.
O conforto aumentou, mas, no ônibus em que ZH embarcou, falta banheiro na parte traseira. A Unesul informa que, dos quatro carros que fazem a linha, dois têm sanitário.
– Passamos por diversas rodoviárias e pontos de ônibus. Se o passageiro precisar ir no banheiro, paramos o mais rápido possível – assegura Gislaine.
15h40min – Torres
O final da jornada
Após três horas e meia de viagem, Gislaine anuncia:
– Última parada: rodoviária de Torres.
Com um sorriso no rosto e um semblante de dever cumprido, o motorista Kleber Vieira Lopes, 38 anos despede-se dos passageiros que desembarcam.
– Dirigir o pinga-pinga é diferente porque exige mais atenção. Como as estradas são piores, é preciso cuidado redobrado para zelar pela segurança dos passageiros – diz o condutor, que terá um tempo de descanso para, no final da tarde, realizar a viagem de volta.
Vitória, a jovem que se emocionou ao despedir-se da irmã em Capão da Canoa, era um dos poucos passageiros a não parecer tão aliviado com o fim do sacolejo:
– Agora é esperar as férias de julho, para poder visitá-la de novo.