Por Cyro Martins Filho, jornalista
Os personagens, as histórias, as comidas e as lidas que compõem o universo da Fronteira Oeste povoaram o tempo de guri vivenciado pelo jornalista Cyro Martins Filho.
Nenhum leitor acertou que a criança da página 27 da Zero Hora de quinta-feira era Cyro Martins Filho.
Tinha a frase mágica: "Ir pra fora". Depois tinha a madrugada, a família embarcada no fusquinha do pai. Tinha o dia nascendo e nós já na estrada de Uruguaiana para a Barra do Quaraí. Tinha bicho cruzando a "carreteira".
- Um ratão!
- Baita lagarto!
Depois tinha estrada de terra. Tinha parada para abrir porteira. Várias. Tinha sanga para cruzar a vau. Três. Na chegada, tinha a "estância do vô Galego". Coração do Matapi. Nosso universo selvagem por três meses. Porque tinha lá o pampa. Lisinho. "O céu ao avesso" do poeta.
O pampa tinha homens e mulheres que se contentavam com pouco, falavam pouco e riam pouco, mas com gosto. Tinha "seu" Beto, o capataz, gaúcho de mais de 60 anos e de todas lidas, olhos claros em rosto de índio. Com 14 anos, tinha lutado na revolução de 23. Tinha a sabedoria de "seu" Beto:
- Faca campeira é sempre bem afiada.
- Praga de urubu não mata cavalo gordo.
Tinha sua paciência em nos ensinar o que era o que no gadinho de osso:
- Este é um potrilho, este aqui é uma novilha...
Tinha sua mulher, dona Preta, e sua comida deliciosa. Feita na "cozinha velha": barro, santa-fé e picumã. Tinha a lua nascendo num horizonte de seca, enorme como um sol fora de hora. E estrelas como nunca mais. Hora dos causos. Tinha a mulher de branco que rondava o pátio na madrugada. Tinha o coronel sem o tronco. Tinha guri se borrando pra dormir. Tinha o outro dia, e o outro.
Tinha meu pai plantando árvores que nunca veria crescer. "Alguém vai", dizia. E proibindo de matar qualquer bicho selvagem que fosse. Mas tinha guri fugindo da sesta no carnal de pelego e matando lagarto e cobra, pescando lambari, dando fundaços em pelinchos e pica-paus.
Tinha minha mãe fazendo o melhor espinhaço de ovelha com pirão do mundo e contando histórias da "estância velha", onde um dia morara toda a sua família. Tinha briga de touros, tinha doma à moda antiga, das de "bordar o lombo a esporas e mangaços". Tinha banho de sanga.
Tinha carreira de cavalos, eu e meu irmão, Ricardo, e o Roque, neto de "seu" Beto, montados "de em pelo", no máximo um peleguito no lombo dos pingos, e largando sapucais charruas campo afora: "Quibi-bi-bi-u-u-u!!". Tinha a tosquia, e tinha a gurizada querendo ajudar. Embretando os bichos, curando os cortes nas ovelhas, juntando as sobras e se sujando toda da cera de lã.
Tinha de aprender a carnear. Uma estocada no pescoço, segurando a cara da ovelha, para o sangue cair numa tigela onde a cachorrada se servia. Tinha de "courear" e tirar a buchada (a briga era pelos rins, para ver quem assava e comia).
Tinha a pipa dágua para encher diariamente. Tinha de levá-la à cacimba. Alguém tinha de atrelá-la ao mulo Mulato, velho e caborteiro, que largava as patas e mordia. Tinha comunicado para o interior do município, horário sagrado de ouvir rádio:
- Alô, Fulano, estância Tal! Aguarde às 11h na porteira com a égua da tua irmã!
Tinha sempre um tempo de parar e pensar. Tinha a certeza de pertencer a algo que atravessava o tempo, passava pelos meus avós, meus pais, passaria por mim e iria adiante. Tenho saudade.
Sabe quem é a pessoa na foto? Clique e dê seu palpite! A resposta será publicada na Zero Hora de sábado.