Por Kenny Braga, jornalista
Na última crônica da seção, Kenny Braga descreve a emoção de vislumbrar o mar de Copacabana, que, até então, ele só conhecia de cenas de filmes e de fotos de revistas.
Nenhum leitor acertou que a criança da página 27 da Zero Hora de segunda-feira era Kenny Braga.
Nasci longe do mar, substituído no registro visual do guri e do adolescente pelos campos extensos da fronteira do Brasil com o Uruguai. Mas a água sempre foi inseparável do meu cotidiano, em poços, cacimbas, lagos, rios e arroios. Eram meus refúgios em dias de sol escaldante, quando até o gado se recolhia à sombra dos eucaliptos, próximos das mangueiras.
Um dia, me engajei numa excursão de colegas ginasianos dispostos a passar algumas horas na praia do Rio Santa Maria, em Rosário do Sul. Desci do trem que partira de Livramento com vontade de enfrentar a correnteza a nado, mesmo sem o preparo indispensável. Mas o ato irresponsável não se concretizou porque um dos nossos professores me assustou com o perigo das palometas.
O Rio Santa Maria voltaria mais tarde à crônica da minha vida na forma de palco da Revolução de 23, no confronto entre chimangos e maragatos. E, aí, sim, eu já tinha condições de empreender longa viagem para ver o mar. Eu morava em Porto Alegre, frequentava as aulas do curso de Jornalismo e queria ver meu pai e meus irmãos, nascidos do seu segundo casamento com a Maria.
Reuni uns parcos tostões, comprei uma passagem de ônibus e fui dar com os costados em Copacabana, que só conhecia em cenas de filmes nacionais e em fotos das revistas. Meu pai, Nelson Braga, morava na Rua Sá Ferreira e trabalhava no jornal O Globo, dividindo o espaço da redação com feras do jornalismo brasileiro. Lembro particularmente do Nelson Rodrigues, do Antonio Olinto e do Franklin Oliveira.
Meu pai me deixou à vontade para ir à praia a hora que quisesse, sem o compromisso de acompanhar meus irmãos, ainda meninos, João, Nelson e Jamile. Minha curiosidade em relação à praia de Copacabana, no trecho fronteiro ao Copacabana Palace, era tanta que quase não dormi direito na minha primeira noite no Rio. Mal acordei, tomei um café rapidamente e corri para o mar.
Em duas horas de praia, extasiado com a beleza das banhistas, que me pareciam deusas inatingíveis, fiquei com as costas em brasa, incapacitado para sorrir e dormir sem preocupações. Só cinco ou seis dias mais tarde tive coragem para retornar à praia em companhia do pai, dos meus irmãos e da proteção ao corpo que as circunstâncias recomendavam.
E aí me soltei na vadiagem boa da areia, onde conheci a Rosa Virginia, natural da cidade paulista de Vera Cruz. Foi amor à primeira vista, que durou alguns meses na base de cartas trocadas entre Vera Cruz e Porto Alegre, onde me reintegrara à rotina da faculdade, do trabalho e da boemia. As promessas de casamento não resistiram à corrosão da distância.
Mas daquela viagem inesquecível ao Rio de Janeiro conservei a imagem de um rosto moreno e de um corpo esguio protegido por um maiô azul. E, sobretudo, a imagem do meu pai, que eu não via há muitos anos, e dos meu irmãos, brincando comigo na areia da praia, após umas das viagens mais bonitas da minha vida.
Ainda sobrou tempo para que eu conhecesse o Maracanã e fosse a uma livraria de Copacabana em busca do autógrafo do Carlos Heitor Cony, que lançava uma reedição do célebre O Ato e o Fato. Ele falava por nós, que não aceitávamos a truculência do regime militar, instalado com o golpe que derrubou o presidente João Goulart. Ainda guardo aquela edição de O Ato e o Fato com o autógrafo do Cony.
E só lamento não ter lhe dito na ocasião que, ainda no ano de 1954, um jornal da minha terra, Santana do Livramento, onde arranjei meu primeiro emprego, também publicou suas crônicas corajosas. O encontro com o mar foi um episódio marcante na vida de moço curioso, mas não produziu na minha imaginação ilíadas e odisseias.
Meu planos não incluíam a descoberta de novos continentes, nem o risco de guerras e conquistas. Eu só queria viver, com a liberdade das ondas, nunca satisfeitas em suas configurações momentâneas.