* Por Jorge Furtado, cineasta
Jorge Furtado resgata da memória sensações vividas na agitada casa de veraneio de Cidreira, na década de 60, onde, ainda criança, passou suas férias mais gostosas.
A praia é Cidreira, em janeiro de 1963. Da esquerda para a direita, minha irmã Nina, minha mãe Dercy, meus irmãos Cláudio (com a bola) e Sérgio, minhas primas Verinha e Eliana, minha irmã Maria da Graça, minha irmã de criação Elvira, eu - aos, três anos, de pijama - e Cecília, a empregada. O fotógrafo é meu pai, numa pequena máquina Leica.
A casa ao fundo, azul e branca, era alugada, na rua do armazém Natal, com seus sonhos quentes recheados de goiabada, merengues e roscas de polvilho. O período de veraneio ia de logo depois do Natal até a volta às aulas, em março. A única água vinha de um poço artesiano, bombeado a manivela, em turnos.
A água era tão salobra que os cabelos ficavam duros e tinham de ser cortados na volta a Porto Alegre. O macuco mais resistente no pescoço e sob as orelhas era eliminado com algodão e álcool. A luz era pouca e faltava frequentemente. Claro que não havia televisão, nem telefone.
Há 10 pessoas na foto e, note, nenhum sapato. Vivia-se de pé no chão, apesar da rosetas e dos bichos-de-pé, quase que certamente adquiridos brincando de areia movediça ou soltando barquinhos nas águas cristalinas entre os grandes cômoros de areia. O pôr do sol naquele deserto branco bem valia alguns bichos-de-pé.
A rotina da casa era a seguinte: praia entre 10 da manhã e uma da tarde, almoço, futebol, cômoros ou lagoa à tarde, jantar, jogos, cantoria e brincadeiras até dormir. Nada pode ser melhor que isso. Nos dias de chuva, leituras, comilança e víspora, cantada com um aposto para cada número: "Dois patinhos na lagoa, 22".
As noites eram estreladas e, na lua cheia, ideais para pescar sapos, com pequenos anzóis de lambari e moscas como iscas. Lembre-se: ainda não tinham inventado a ecologia. Contos de terror e assombração, histórias de crimes e enforcados alternavam-se com serestas ao violão, jogatina - buraco, trunfo, canastra, mímica, pontinho, dominó, charadas - e mais comilança.
Lembro perfeitamente da felicidade daqueles dias de férias, mas de quase nada do interior da casa, sua sala e seus quartos. De fato, lembro melhor do espaço sob a casa, onde nos enfiávamos para escapar do calor da tarde.
A areia gelada, o cheiro forte da madeira úmida, os grandes sapos cor de cinza e as lagartixas são talvez minha lembrança mais antiga. Lembro especialmente de um sapo gordo, de olhos escuros, que me disse uma vez: "Você não pode se lembrar de um sapo falante, sapos não falam. Se você quiser um sapo que fale, vai ter de inventar um". Ele tinha razão.
Sabe quem é a pessoa da foto? Clique e dê seu palpite! A resposta será publicada na Zero Hora de amanhã.
Houve uma vez um verão
O sapo falante de Cidreira
Cineasta Jorge Furtado conta sua rotina junto à família no Litoral Norte durante a infância
GZH faz parte do The Trust Project
- Mais sobre: