* Por Sergius Gonzaga, Secretário da Cultura de Porto Alegre
Pânico, alumbramento e espanto foram os sentimentos que se misturaram em 1954, quando Sergius Gonzaga viu o mar pela primeira vez, em Tramandaí.
No verão de 1954, passamos um fim de semana na casa de veraneio de uns primos afastados de meu pai, em Tramandaí, e assim eu pude ver pela primeira vez o mar. Lembro com alguma nitidez de meu irmão menor, o Régis, passeando numa minicharrete puxada por um cabrito, e também de certos detalhes da longa viagem ao litoral: a velha pick-up Dodge, a paisagem deserta e as estradas poeirentas. Chegamos ao anoitecer e fomos até a praia.
Não sei se o que então senti foi pânico ou alumbramento ou simples espanto diante da vastidão das águas, do movimento frenético das ondas, do bramido da grande massa líquida, indicando que o mundo era infinito e, talvez, opressivo. Recordo apenas que quando a areia molhada cedeu aos meus pés e a água marinha aflorou, gélida e viva, segurei a mão forte de meu pai e olhei para minha mãe como quem buscasse proteção.
Mal dormi à noite, ouvindo os vagalhões batendo na praia, e na manhã seguinte cumprimos, um pouco aturdidos, os rituais dos veranistas da época, um dos quais era deixar por muitas horas o sal no corpo em função do iodo que nos protegeria de todos os males da existência.
Naquele mesmo domingo, papai comprou duas conchas de caramujo em que era possível ouvir a sonoridade do oceano e, por largo tempo, meu irmão e eu adoramos esses estranhos objetos calcários, porque com um gesto trivial conseguíamos recuperar o assombro de nossa experiência em Tramandaí.
Em 1954 não sabíamos ainda o que viria depois, sobremodo no transcurso dos anos 60: a casa da família enterrada nos cômoros da Zona Nova, as costas ardidas pelo sol, os repuxos, as planondas, as caipirinhas na Taberna do Willy, o óleo Dagelle que fritava a pele, o esplendoroso biquíni azul da professora da Aliança Francesa, as loucuras juvenis, o primeiro beijo na roda-gigante, as esfregações transgressoras nos muros sombrios, as candentes noites enluaradas e a tristeza do último dia de fevereiro quando as casas se fechavam e os namoricos de verão se extinguiam melancolicamente.
Os anos 60, porém, demoraram a chegar e, enquanto os meninos cresciam, as conchas mágicas foram se perdendo na região do esquecimento. No entanto, ficou-me para sempre o hábito de - ao encontrar uma dessas conchas em qualquer tenda do litoral - levá-la de imediato ao ouvido.
Então, como num milagre da memória, consigo escutar o rugir tonitruante das ondas e sinto a areia se desfazendo a meus pés e encontro abrigo na mão pétrea de meu pai e no olhar amoroso de minha mãe e, por fim, te revejo, ó, velha e provinciana Tramandaí, com tuas avarandadas casas de madeira, teus postes de luz cobertos pela maresia, teu mar absoluto e tuas promessas de vida.
Sabe quem é a pessoa da foto? Clique e dê seu palpite! A resposta será publicada na Zero Hora desta segunda-feira.
Houve uma vez um verão
As conchas e a sonoridade do oceano
Secretário da Cultura de Porto Alegre, Sergius Gonzaga relembra primeira experiência na beira da praia, em Tramandaí
GZH faz parte do The Trust Project
- Mais sobre: