Historiadora e socióloga, Véra Lucia Maciel Barroso dedicou a vida aos estudos sobre as raízes do Rio Grande do Sul. Coordenadora do Arquivo Histórico da Santa Casa desde 1986, a pesquisadora tem como principais objetos de estudo a colonização açoriana, memória e patrimônio, com cerca de 50 livros publicados no Brasil e no Exterior. Aos 75 anos, a gaúcha de Santo Antônio da Patrulha foi escolhida patrona da 35ª Feira do Livro de Gravataí, que aconteceu em junho e teve como mote a reflexão sobre patrimônio.
Uma das principais referências quando se trata da história do RS, a doutora em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) conversou com a Zero Hora sobre o impacto da enchente que atingiu o Rio Grande do Sul para o patrimônio histórico e as lições que ficam. Para a pesquisadora, o patrimônio serve como elo identitário entre as pessoas e o lugar onde vivem, e a "memória coletiva tem muito valor". Confira a entrevista:
Muitos locais históricos foram atingidos pela enchente, incluindo bibliotecas, museus e acervos importantes. Qual o impacto dessa tragédia, quando pensamos em patrimônio?
Nós não somos alguém neste mundo se não reconhecermos aqueles que nos fizeram ser o que somos. Então, quer o patrimônio edificado, manifesto através de prédios, ou através de papeis ou outros suportes de memória, podemos, através deles, fazer uma leitura e uma compreensão de como que foi esse passado. E como podemos, a partir dele, aprender para sermos melhores. A história tem fundamentalmente esse significado: dar lições para que nós possamos construir uma sociedade mais justa, mais igualitária e melhor para todos, do ponto de vista da cidadania e da inclusão. A memória coletiva tem muito valor. Não vai haver desenvolvimento de um município se a sua administração não fincar o pé na trajetória do que este município atravessou. Um bom administrador, que projeta um futuro correto, sadio, inclusive os cidadãos, têm que conhecer a trajetória do seu município, com os seus erros e acertos. E onde acessamos essas informações? Nos acervos. Por isso que a rubrica da cultura tem que aumentar, e muito.
Que lições podemos aprender com essa experiência? Que mudanças precisam ser pensadas nas práticas de preservação?
Os patrimônios são bens, são legados de antepassados. É um testemunho do tempo, das pessoas que viveram antes de nós. E como tal, são bens que temos que cuidar, temos que preservar. Nessa direção, os bens edificados, os prédios, que testemunham o tempo, os bens de arquivos e de museus, precisam ser conservados em lugares que não sejam baixos, principalmente para nós que moramos e estamos à beira d’água. Exatamente nos locais onde eram áreas baixas foram atacados pela água. E isso é lamentável, porque se perdem as informações, os testemunhos de um tempo que passou, que é a nossa base, nosso alicerce. Que nos diz quem somos, para onde queremos ir como agentes da história, atrizes e atores do tempo, que todos nós somos. Quando se vai escolher um local para colocar uma biblioteca, um museu, um arquivo, é preciso olhar a topografia do terreno do município e colocar em áreas mais altas. Não tem outra forma de preservar e impedir que os acervos sejam perdidos.
Você diz que o patrimônio é um elo identitário entre as pessoas e o lugar onde vivem. Como fica o patrimônio nesse contexto, em que justamente os lares das pessoas estão sendo devastados?
Na perspectiva do museólogo francês Hugues de Varine, o primeiro patrimônio é o humano. Como tal, as pessoas precisam ser cuidadas e conservadas. Com a enchente, o primeiro patrimônio que se perde é o humano. Muitas pessoas ficaram à beira da pobreza com essa calamidade. Um segundo problema patrimonial diz respeito aos documentos pessoais. Esses documentos são testemunha de quem as pessoas são. Todas as fotografias das pessoas, os objetos guardados da infância e da adolescência, os pertences, tudo é testemunho de uma trajetória de vida. E tudo se perdeu, o patrimônio pessoal, familiar. Isso faz com que as pessoas e instituições atingidas percam a sua identidade. Assim como o que aconteceu com o Centro Histórico de Porto Alegre, nossos museus, nossos memoriais. É uma tragédia.
Qual a diferença entre patrimônio material, imaterial e social? E qual a relação com a memória?
O patrimônio material engloba os prédios, as edificações, ou até uma fonte, uma bica, por exemplo. Tem o acervo museológico, que são os objetos, que podem ser em qualquer suporte material, como madeira, metal ou vidro. O patrimônio arquivístico diz respeito aos documentos em seus diferentes formatos, como papel, fotografia, VHS, fita cassete e digital. O patrimônio material é testemunha das memórias individual e coletiva. Já o patrimônio social é produzido coletivamente. Diz respeito à coletividade, a instituições formadas por uma mesma comunidade, por exemplo. Tem também o patrimônio imaterial, que não é palpável. Festas e celebrações, costumes, tradições, o modo de vestir, as canções de roda, brincadeiras infantis, tudo isso são patrimônios imateriais. E isso tudo fica na memória coletiva.
O que é o projeto Raízes e quais foram os resultados desse trabalho?
Criamos esse projeto para estudar a história e origem dos municípios que surgiram a partir de Santo Antônio da Patrulha. O primeiro encontro aconteceu em 1990. Nós chamamos os professores municipais e a comunidade para o clube recreativo Cidade Alta, e convidamos um historiador de cada município filho de Santo Antônio para trocar conhecimentos. O segundo encontro foi em São Francisco de Paula, no ano seguinte, e foi aí que surgiu o nome Raízes. A partir disso, começamos a realizar encontros todos os anos, e essa iniciativa já rendeu 34 livros, um para cada cidade. Santo Antônio da Patrulha é um dos quatro primeiros municípios do Rio Grande do Sul, junto de Rio Grande, Rio Pardo e Porto Alegre. Se hoje nós temos 497 municípios, eles são descendentes desses quatro primeiros.
Também veio à tona a riqueza das nossas bacias hidrográficas, com a enchente. Qual a importância desses rios e lagos para nossa história e por que precisamos aprender sobre isso?
As pessoas não se deram conta da riqueza hidrográfica que nós temos aqui. Nós somos abraçados por vários rios. Fora a grande Amazônia, o Rio Grande do Sul tem uma das maiores bacias do país. Quem deu nome a esses rios foram os indígenas, nós temos o Rio Itapuí, conhecido hoje como Rio dos Sinos, tem o Rio Gravataí, chamado assim por conta das bromélias, dos gravatás. Tem o Rio Caí, que faz referência a queda. Temos Rio Taquari, das taquaras, tem o Rio Ibicuí. Os indígenas davam o nome da topografia à natureza. Mas essas águas estão descuidadas, não só por conta da poluição, mas também pela devastação das florestas em áreas ribeirinhas, a depredação da mata. O meio ambiente também é um patrimônio que precisa ser preservado. Então, precisamos trabalhar nas escolas são só a educação ambiental, mas também a educação patrimonial, para que nossos patrimônios sejam respeitados e valorizados.
Um de seus principais objetos de estudo é a colonização açoriana. Que traços dessa cultura ainda carregamos? Qual a herança nossa história?
Temos uma formação étnica muito rica. Eu sou da Casa dos Açores do Estado do Rio Grande do Sul, em Gravataí, que serve para auxiliar na preservação e resgate da cultura açoriana. Produzi algumas obras justamente para mostrar a relevância dos açorianos do Rio Grande do Sul. Mesmo em âmbito acadêmico, se estuda muito pouco sobre a influência desses povos. Muito se fala sobre a colonização alemã e italiana, mas eles já chegaram aqui com a casa arrumada. Os açorianos também têm grande protagonismo na nossa história, mas é uma história que tem pouca visibilidade. Claro que eles não eram heróis, não existe história heroica. Mas eles contribuíram muito com a formação do Estado. As tradicionais danças gauchescas, como a dança do pezinho, chimarrita, balaio, tudo isso é herança dos Açores. Celebrações religiosas e festas, como a festa do Divino Espírito Santo, a festa junina, o tapete de Corpus Christi, o Dia do Terno de Reis, também fazem parte do legado açoriano no Rio Grande do Sul.