— Tinha lugar com 60, 70, 80 pessoas em cima, era um pavor. De noite mesmo, era uma coisa horrível de se ver, as pessoas com telefone fazendo sinal, batendo panela, pedindo socorro. Foi um negócio que parecia o fim do mundo — descreve o pescador Giovani Pereira de Souza, 47 anos, presidente da Associação de Pescadores de Imbé.
Souza foi um dos inúmeros voluntários do Litoral Norte que atuaram em resgates pelo Estado no início do mês, tendo ajudado, inclusive, na evacuação do Hospital de Pronto Socorro de Canoas. Assim como voluntários do Brasil inteiro se dirigiram ao RS, gaúchos do litoral – uma das poucas regiões poupadas pela catástrofe climática – não mediram esforços para salvar a população. Sem os heróis civis, os resgates de mais de 75 mil pessoas em todo o Rio Grande do Sul teriam sido ainda mais árduos.
Moradores de Tramandaí, Imbé, Cidreira, Capão da Canoa, Osório, Torres e outras cidades litorâneas estimam ter participado do resgate de pelo menos 7 mil pessoas na Região Metropolitana, sobretudo em Canoas e Eldorado do Sul. Somente em Tramandaí e Imbé, mais de 50 pescadores abandonaram seu ofício para participar da missão.
Determinados a ajudar, conseguiram guinchos e caminhões para transportar embarcações e pessoas. Ao chegar, a cena foi "inacreditável" e emocionou o grupo, conforme Diego Oliveira, 33, pescador e dono de uma peixaria em Tramandaí. Eles passaram cerca de cinco dias ajudando na água, em meio à chuva incessante.
Para isso, foram utilizados barcos, botes e grandes embarcações marítimas. Os pescadores relatam que, para navegar na água marrom que tomou o bairro Mathias Velho, um dos mais afetados de Canoas, era preciso desviar de semáforos e fiação elétrica. Para Oliveira, estar acostumado com a água fez toda a diferença para navegar com segurança e não virar as embarcações – como aconteceu com algumas que tiveram de socorrer.
O mais difícil foi ver a situação das pessoas, conforme o pescador: choravam, gritavam, e algumas não queriam sair de suas casas, sabendo que perderiam tudo. Oliveira lembra de encontrar pessoas desesperadas, que pediam socorro em cima de telhados, do forro, de carros, de caminhões e pelas janelas.
— O cara fica desesperado olhando as pessoas gritando, atacando. Chegava de noite mesmo, passava um barco perto das casas e só faltavam avançar, desesperadas para sair. Foi um sistema de terror, elas querendo pular, querendo dar um jeito de pegar a embarcação — recorda.
Teve uma hora que eu cheguei lá, e as pessoas disseram: "Pelo amor de Deus, não deixa a gente aqui".
DIEGO OLIVEIRA
Morador de Tramandaí
Os pescadores deram o máximo de si e fizeram tudo o que estava ao seu alcance, afirma Souza. Em um dos lugares em que fizeram resgates, havia 600 pessoas sem água e sem comida.
— Eu não parei nunca. E de madrugada, chovendo, a gente resgatando as pessoas, elas não queriam saber, elas queriam sair dali. Teve uma hora que eu cheguei lá, e as pessoas disseram: "Pelo amor de Deus, não deixa a gente aqui". Eu disse: "Enquanto não sair o último daí, eu não vou parar" — relembra.
Força comunitária
Guarda-vidas, empresários, surfistas, jipeiros e outros membros da comunidade litorânea também participaram da mobilização para salvar pessoas – alguns, entretanto, preferem permanecer anônimos. Em Capão da Canoa, um grupo de empresários levou cerca de 20 pessoas que resgataram para um abrigo na cidade. Morador de Imbé, o empresário Elton Kramer, 41, realizou mais de 200 salvamentos com uma moto aquática, ajudando a puxar embarcações. Depois, emprestou por alguns dias uma quitinete na praia para uma família desconhecida que perdeu tudo na enchente.
Podia ser a minha cidade. A gente é ser humano, tem que ajudar o próximo.
ELTON KRAMER
Morador de Imbé
— Parecia um filme de guerra, era surreal. Um filme de terror. As pessoas pedindo "ajuda, ajuda", e a gente não conseguia mais ajudar. Não cabia mais gente no barco. E fome, frio. A gente estava com muito frio. Foi um negócio inesquecível. Foi bom ajudar, mas foi muito chocante — narra.
O empresário decidiu seguir o seu coração e levar apoio ao ver a gravidade da situação nos municípios atingidos pelas enchentes.
— As pessoas estavam morrendo, e eu com um "jet" novo na garagem, por que eu não ia poder ajudar? Podia ser a minha cidade. A gente é ser humano, tem que ajudar o próximo — destaca.
Kramer recorda do agradecimento de uma mulher já sem forças, que se encontrava em cima de um telhado, com a água na cintura, quando foi resgatada. Essa e outras cenas ficaram marcadas:
— Quando eu cheguei, uma senhora me abraçava e falava que nós éramos os heróis do litoral. Outro pessoal que eu tirei, 50 pessoas, só de um colégio de dois pisos, eles estavam loucos de fome, dois dias com fome. A gente tinha pegado marmita antes, largamos aquelas marmitas, e o pessoal comia com a mão… e agradecia a nós, que nós somos os heróis, que não abandonamos eles. Aquilo me deu mais força para ajudar mais.
Proprietário de uma construtora em Osório, Rafael Panassolo, 50, pegou emprestado o barco de um amigo para socorrer quem necessitava de auxílio em Canoas, Eldorado do Sul e Guaíba. No processo, chegou a se machucar e precisou levar sete pontos na testa. O empresário recorda que encontrou o bairro Mathias Velho completamente submerso, sendo possível ver apenas os telhados de algumas casas. No trajeto de aproximadamente um quilômetro, trazia, ao lado de outro voluntário, cerca de oito a 10 pessoas por vez.
Muitas crianças faziam toda a travessia chorando, sem falar uma palavra e sequer levantar a cabeça.
RAFAEL PANASSOLO
Morador de Osório
— Mas não parava nunca, sempre que retornava para o bairro, encontrava naquele ponto dezenas de pessoas, que ficavam juntos a porcos, cavalos, bois e cães. Rapidamente subiam no nosso barco e no da Polícia Federal, que fazia o mesmo trajeto — conta, destacando que praticamente todas as famílias levavam seus animais de estimação.
O barco emprestado acabou retornando danificado, mas, graças a ele, Panassolo conseguiu realizar mais de 300 resgates. O empresário conta que ouviu boatos sobre corpos nas ruas de Canoas, mas não viu nada disso.
— Somente muita tristeza, eram famílias extremamente pobres, todas em estado de choque, parecia que não sabiam o que fazer, muito triste. Muitas crianças faziam toda a travessia chorando, sem falar uma palavra e sequer levantar a cabeça. Isso foi o mais triste, tenho dois filhos adolescentes — lamenta.
Tudo outra vez
Para o presidente da Associação de Pescadores de Imbé, a situação reforçou a união dos gaúchos. Brasileiros de outros Estados também desempenharam uma ajuda importante, acrescenta.
— Desde quem cortou o pãozinho para fazer o sanduíche, quem ajudou a fazer a logística, um café, fez parte dos resgates, eu acho que são os heróis. As pessoas que ajudaram de tudo o que foi jeito, até em uma ligação para dizer: "Vai lá, ajuda aquela família lá" — afirma.
Felizes por terem socorrido vidas e emocionados ao relembrar a situação, os voluntários agora aproveitam para juntar e levar doações a essas e outras cidades. Todos salvaram muitas pessoas, frisam os pescadores – e, se depender deles, continuarão salvando. Alguns pescadores ainda estão em outras cidades ajudando a remover as famílias que desejam sair de suas casas. Outros ainda não voltaram a pescar e estão com as embarcações a postos, esperando, caso seja necessário auxiliar novamente.
— O que foi visto lá pelo nosso pessoal e por todos, eu quero nunca mais ver — ressalta Souza. Mas pondera: — Se tiver que fazer tudo de novo, a gente vai fazer.