Todas as manhãs, Arthur Adams se veste para ir ao trabalho. Começa com as meias de algodão que alcançam os joelhos, onde são presas por finas faixas de sarja. Depois vêm as calçolas de linho, estendidas até os tornozelos nos dias frios ou limitadas às coxas nos mais quentes.
A seguir, ele coloca a camisa branca em cambraia, com gola e punhos engomados, sobreposta por um colete bordado à mão e modelado ao corpo por um cordão que serpenteia os ilhós das costas. A calça de algodão é segura por um suspensório e não tem zíper, mas dois botões que abrem um alçapão frontal.
A gravata alva praticamente enfaixa o pescoço, perfazendo um laço no gogó. Por último, ele veste a casaca com forro de seda, 12 botões e uma cauda de 60 centímetros. As sapatilhas, a cartola e a bengala completam o figurino.
Aos 28 anos, Arthur parece saído de um conto do dramaturgo irlandês Oscar Wilde. Flanando tal qual um dândi serrano pelas ruas de Gramado em pleno 2023, com frequência é confundido com atores de algum espetáculo teatral. Arthur, todavia, só se veste assim.
É adepto do que se conceituou chamar de revivalismo, movimento sociocultural que resgata hábitos, princípios e tradições do passado. Confeccionando em casa todas as roupas que usa, Arthur tem especial afeição pela moda europeia do final da era georgiana, em específico pelo vestuário do período entre 1780 e 1820.
— É uma época de que eu gosto bastante, tanto pelas revoluções que temos na indumentária como no pensamento. É o finalzinho do iluminismo e o começo da era romântica, muita coisa já estava se modificando — justifica.
Natural de Igrejinha, município de colonização alemã no Vale do Paranhana e cuja economia é baseada na indústria calçadista, Arthur é filho de uma cozinheira e um sapateiro. Ainda menino, herdou dos pais a habilidade manual e estudou piano durante 11 anos.
No final da adolescência, mudou-se para Porto Alegre, onde concluiu o Ensino Médio e aprofundou o aprendizado de Música na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Em 2017, decidiu se mudar para Gramado para ficar mais perto da família. Culto e apaixonado por antiguidades, logo conseguiu emprego em um antiquário da cidade. Na sequência, matriculou-se em um curso de História.
Foi quando veio a pandemia. Pouco antes, Arthur já havia se interessado pela moda vintage. Percorrendo brechós da serra gaúcha, garimpava peças de vestuário dos anos 1940 e 1950 e mantinha contato com outras pessoas que apreciavam a mesma época. Trancado em casa em função da emergência global decretada pelo surgimento da covid-19, ele procurou refúgio na costura e na pesquisa. Especificamente, em uma atividade que reúne os dois temas: a costura histórica.
— No começo eu só queria entender melhor o que via nos filmes. Queria saber como aquilo funcionava na prática, no dia a dia, mas só a leitura não estava sendo suficiente para basear o que eu queria dizer, o que eu queria pesquisar, porque eu queria viver os trajes da época, entender como todos os tipos de calças eram feitas, como todos os tipos de camisas de baixo, as gravatas — conta.
Arthur se debruçou primeiro na modelagem. Rabiscando agachado no chão de casa, precisou transformar as medidas da época, expressas em polegadas, para centímetros. Aos poucos, foi refinando o traço, melhorando a precisão dos cortes, aperfeiçoando os pontos. Dedicou-se também ao bordado, usando linha e agulha para decorar as peças com desenhos de flores e pássaros. Em meados de 2020, ao sentir que já progredira bastante e havia montado um bom acervo para uso pessoal, Arthur doou para uma igreja todas as camisetas, calças jeans e demais roupas contemporâneas. Desde então, nunca mais foi visto vestindo algo deste século.
Quando tinha dúvidas ou precisava de ajuda, recorria a comunidades na internet dedicadas ao mesmo hobby. Foi num desses grupos virtuais que conheceu Paulo Samu, um designer de moda de 30 anos também apaixonado por costura histórica. A afinidade na troca de dicas, ideias e sugestões logo cresceu para um flerte que se transformou em paixão. Eles se conheceram pessoalmente em 2022, durante um piquenique de revivalistas em São Paulo.
No mês passado, Paulo se mudou em definitivo para Gramado e agora mora com Arthur num charmoso chalé de madeira todo decorado com antiguidades e rodeado por um bosque no bairro das Orquídeas.
– Eu via muito no YouTube os canais estrangeiros de costura histórica, mas não imaginava que existia no Brasil. Daí comecei a costurar minhas próprias roupas, postar no Instagram. Conheci o Arthur nessas comunidades. Quando vim pela primeira vez a Gramado, foi para ficar duas semanas. Acabei ficando dois meses – lembra Paulo.
A rotina do casal é praticamente toda voltada para a vida de séculos passados. Enquanto Arthur trabalha no antiquário Rhino, um dos mais badalados de Gramado, Paulo fica em casa, costurando. Hábil na pintura, artesanato e, claro, na costura à mão e à máquina, ele atua por encomenda, sobretudo para clientes que desejam um figurino para festas à fantasia, eventos de cosplay ou simplesmente usar nos momentos de relax doméstico. Está especializando-se na confecção das tradicionais camisas antigas de cambraia, as chemises.
— É engraçado, temos amigos que querem um chemise apenas para botar e ficar estirado no sofá, se sentindo um cortesão – diverte-se Arthur.
Juntos, eles têm mais de mil peças de roupa — só gravatas, são quase 300. Tamanho guarda-roupa permite que passeiem pela cidade sempre usando um adereço diferente.
Quando cansam de determinado item do vestuário, desmancham para aproveitar alguma parte, como um bordado, ou revendem em bazares e brechós. Ao mesmo tempo, vasculham a internet atrás de livros de modelagem histórica, tecidos e demais apetrechos que possam compor um figurino pré-vitoriano. As únicas peças que a dupla não confecciona pessoalmente são os chapéus e os sapatos, comprados em lojas ou brechós e customizados em casa.
A despeito da suposta excentricidade, Arthur e Paulo procuram popularizar a costura histórica. Dão cursos, compartilham informações e testam tecidos, sempre buscando tornar mais fácil e barato o ato de confeccionar cada roupa, respeitando a modelagem da época.
Não raro, Arthur transforma toalhas de mesa em fraques. Pouco tempo atrás, pegou um longo pano imundo que cobria um sofá recém-chegado ao antiquário. Após vários dias submetida a um molho no cloro para retirada das manchas, a manta suja ressuscitou no formato de uma elegante casaca branca.
— Na Europa, a costura histórica é um hobby bem elitizado, o pessoal é rigoroso e quer que tudo seja feito do mesmo jeito de antes. Nós queremos torná-la acessível, até para termos mais gente nos encontros. Não fazemos peças de museu, são roupas para usar no dia a dia. O importante é achar uma gramatura parecida, mas com tecidos como linho e algodão. Aliás, se as pessoas do século 19 passado vissem esses tecidos, também fariam como nós, até pelo preço mais barato — diz Arthur.
Aos poucos, Paulo e Arthur foram incorporando ao figurino os modos e trejeitos da época. Caminham com leveza, mantêm gestos delicados e falam com vagar, sob rígida obediência à norma culta. O culto à alfaiataria de antanho também lhes forjou uma tolerância à má educação dos curiosos.
Com frequência, são indagados na rua se estão fantasiados de pirata, palhaço (!) ou Pedro Álvares Cabral. Também já foram perguntados se pertencem a alguma religião. Pacientes e extremamente bem educados, respondem com fidalguia que não, não se trata de religião nem de fantasia, é apenas um modo de vestir, tal qual os moradores da França e Inglaterra de dois séculos atrás.
Em fevereiro, eles foram com cinco amigas também revivalistas ao Museu do Ipiranga, em São Paulo, conhecer o acervo e, claro, tirar muitas fotografias em um cenário que se adequava perfeitamente à indumentária do grupo. Causaram um furor que praticamente os impediu de circular pelos salões, tamanha a volúpia dos turistas por fotos e stories com o que imaginavam ser atores em uma performance patrocinada pelo museu.
— A gente foi lá de manhã, porque tem menos gente. Não teve jeito. Não conseguíamos terminar uma frase. Estávamos usando um traje militar bem básico, quase cosplay de Dom Pedro, mas as pessoas enlouqueceram. Ficamos das nove da manhã às três da tarde tirando fotos com os turistas — ri Arthur.
Em Gramado já se tornou mais tranquilo. Porém, no antiquário, a maioria dos clientes ainda acredita se tratar de uniforme de trabalho. Nas ruas, grande parte dos moradores mostra-se acostumada à presença de dois fidalgos de fraque e cartola caminhando pelo centro, ainda que, vez por outra, surja algum incauto desrespeitoso, fazendo piadas ou debochando da dupla que parece ter caído de uma máquina do tempo. Arthur dá de ombros. Sabe que divertiu muito mais pessoas com seus modelitos seculares do que atraiu chacota e zombaria.
A devoção ao passado tampouco o impede de curtir as delícias do presente. Ao concluir mais um passeio noturno pelas ruas iluminadas da cidade que nesta época já está decorada para o Natal, ele chama o namorado para um lanche típico de quem nasceu nos anos 1990:
— Vamos no McDonald’s?