Pimenta, tripas para linguiça, um balde para guardar banha: esse foi o pedido de um cliente na bodega Goldoni, em Anta Gorda, na tarde do último dia 18. Leucir Goldoni, 71 anos, interrompeu a conversa com GZH para moer, pesar e embalar a especiaria. Depois andou pelo armazém, catou as outras mercadorias solicitadas e as entregou ao homem:
— 114 pila — disse o dono do estabelecimento, que calculou o valor “de cabeça”.
O cliente, Gerson Scorsatto, 52 anos, conhecido no município pelo apelido "Meio quilo", pagou a conta em dinheiro:
— Aqui tem essa pimenta que não existe em lugar nenhum. Esse balde é difícil de encontrar em mercados. Venho seguido quando preciso de alguma coisa. Hoje vim porque vou matar um porco — contou o eletricista, que também foi vereador em Anta Gorda.
O relato exemplifica a rotina de Leucir Goldoni há décadas: “nascido no local”, como diz, atua no comércio desde criança, quando ajudava o pai, David Goldoni, nas atividades da bodega.
O negócio faz parte da trajetória familiar e é também um capítulo da instalação dos imigrantes italianos no Vale do Taquari, que começou na década de 1880. O comerciante relaciona a longevidade do negócio ao bom relacionamento com os moradores locais, o cuidado com a parte financeira e à atenção aos clientes que pedem regalias no momento de pagar a conta.
— Evito vender fiado. Tem que se cuidar: é no dinheiro, senão fica complicado. Também evito dar desconto, tem que botar o preço que é (a mercadoria) e fim de conversa — aconselha.
Estabelecimento histórico
São poucos os detalhes da origem do casarão que abriga a bodega. Quem o ergueu, os proprietários nas primeiras décadas, o que era feito ali no início são pontos com respostas vagas. Um número pintado na entrada do porão indica o que seria o possível ano de construção do imóvel: 1881, ou seja, 142 anos atrás, época da chegada dos imigrantes à região.
A trajetória do prédio é melhor narrada quando Alverle Goldoni vendeu o negócio - já uma mercearia - para David Goldoni em algum momento entre as décadas de 1930 e 1940 (Leucir também não sabe ao certo). Apesar de dividirem o sobrenome, Alverle e David não eram familiares. Lacunas à parte, o atual dono e moradores da região asseguram que a tradição local aponta para o fato de a bodega ser tão antiga quanto o prédio onde está instalada.
David Goldoni foi vereador e um dos responsáveis pela emancipação de Anta Gorda - hoje com 5,9 mil moradores - em 1963. A Câmara de Vereadores do município leva o nome do político, que morreu em 1969. Foi quando, aos 17 anos, Leucir herdou a casa e deu continuidade ao negócio.
— Não tinha outra saída: era trabalhar ou morrer de fome — brinca.
Leucir mora no prédio onde está a bodega. Ele é casado há 45 anos com Ivanete Goldoni. O casal tem quatro filhos, todos adultos.
A bodega Goldoni fica na Vila Borghetto, em frente à Capela São Jorge. A estrutura tem três andares de madeira e um porão de pedra. Não há qualquer indicação na fachada de que o imóvel é um armazém. O mercado não está no Google Maps, mas é fácil encontrá-lo: fica na Estrada Borghetto, a cerca de 300 metros do pórtico de entrada de Anta Gorda na RS-432. Na internet, as únicas informações do local são de reportagens da imprensa da região, pois o comércio não tem perfis nas redes sociais.
— Eu não tenho nada disso: nunca me interessei, nunca fiz. Agora começaram a me rodear (para criar), mas não gosto muito da ideia. Não entendo essas coisas — justifica o dono.
Mix de produtos
Leucir precisa de alguns segundos para elaborar a resposta à pergunta: o que é vendido na bodega? O armazém tem prateleiras abarrotadas com produtos que são consumidos pelos moradores da região. É possível encontrar biscoito artesanal, chinelo, produto de limpeza, roupa, cortador de unha, presilha para cabelo e botijão de gás de cozinha. Próximo ao balcão de atendimento há armários com tecidos vendidos por metro, que eram requisitados no passado, mas que têm baixa procura no momento.
— Vendo um pouco de tudo — resume o comerciante.
O destaque, segundo Goldoni, são as bebidas alcoólicas: cachaças, cervejas e vinhos, que podem ser consumidos no local em uma mesa do lado esquerdo da entrada. O negócio funciona de segunda-feira a sábado, mas o dono diz não abrir “cedo”. No dia da entrevista, o serviço havia começado às 7h10min e a expectativa era de seguir até as 18h30min. O domingo, Leucir afirma, é reservado ao descanso, porque trabalhar todos os dias seria uma "prisão". Há, porém, ressalvas à regra:
— Não abro as portas no domingo, mas se batem pedindo um saco de carvão, um refri, eu atendo. Estou sempre em casa. Como é que eu vou dizer não?
Contabilidade incomum
Goldoni não utiliza calculadora nem tem caixa registradora na bodega. Quando precisa calcular, rabisca os valores em uma folha de papel e os soma para cobrar o cliente. A última concessão à modernidade no negócio foi a adoção do Pix, mas que está no nome de uma das filhas. Diz que é assim porque seu celular - um modelo flip comprado há vários anos - não comporta a tecnologia.
O comerciante deixa expostas as "notas fiscais" do mercado na parede às costas do balcão. É possível ver quanto e quando ele pagou e para os fornecedores. Diz que é para mostrar que “não deve nada para ninguém”.
Os produtos têm o preço anotado à mão, alguns deles acompanhados por letras de uma espécie de código, que, para um desavisado, parecem rabiscos ou sequências aleatórias. É, sim, uma estratégia para descobrir rápido o montante investido na aquisição da mercadoria.
— Olho (o código) e sei o quanto me custou. Isso ajuda no negócio, para saber a margem quando pedem desconto — explica.
GZH insistiu duas vezes para Goldoni revelar o valor pago por um objeto à venda que continha o código. A resposta foi educada, mas para rechaçar o interesse no assunto:
— Nem a família sabe o significado. Ninguém vai saber, nunca: é segredo perpétuo.
Futuro
Leucir Goldoni não fala em aposentadoria e assegura não ter intenção de se desfazer do negócio familiar. Relata gostar do convívio com os clientes, o laço de amizade e trabalho que criou desde criança com os moradores da região. Afirma não ter recebido oferta para vender o local, apenas ideias para expandir, como instalar um restaurante ou uma lancheria no ponto. Por isso, reluta quando questionado se uma boa proposta financeira fosse feita pelo prédio:
— Mas o que eu ia fazer da vida (se vendesse a bodega)?
E o futuro do armazém sem ele? Ele faz o balanço: os quatro filhos traçaram carreiras profissionais que os afastaram da vida no comércio e não há qualquer indicativo de que algum deles vá mudar a perspectiva e assumir a bodega nos próximos anos. Para Leucir, isso não é um problema, e sim resultado de ações que a família optou seguir.
— Eles (os filhos) não vão trabalhar aqui depois que eu “capotar”. Dei faculdade para todos com o dinheiro da bodega, não posso exigir isso deles. Eu resumo a minha situação assim: não progredi, mas nunca quebrei. Nunca faltou nada, graças a Deus. Então, se queixar de qualquer coisa é um pecado — conclui.