Está nas mãos de poucas pessoas a responsabilidade de manter viva a história do cobertor mostardeiro, uma tradição de mais de dois séculos de Mostardas, no sul do Estado. E não é figura de linguagem: o número de interessados no negócio diminuiu nas últimas décadas; sete pessoas ainda trabalham com a peça no município, conforme levantamento da prefeitura. O produto artesanal é vendido em feiras, na região e fora do Rio Grande do Sul.
O cobertor começou a ser produzido com a chegada dos imigrantes açorianos no século 18. A importância histórica e econômica fez o município declarar o produto de lã, em 2009, patrimônio cultural.
O desinteresse preocupa quem estuda a história de Mostardas e a administração municipal, pois a peça é vista como um símbolo capaz de gerar renda, atrair turistas e divulgar o município ao país e para o Exterior.
GZH esteve no município no último dia 19 e conversou com duas profissionais que produzem o cobertor mostardeiro.
Foco total na lã
Noemi dos Santos Lemos, 57 anos, é artesã há mais de três décadas, mas dedica-se de forma exclusiva ao trabalho com lã faz dois anos. Ela trabalha sozinha em uma peça construída na parte da frente do pátio da casa onde mora. Ali, o tear manual, no qual é feito o cobertor mostardeiro, ocupa mais da metade do espaço. Além dele, há a roca para enrolar a lã, as cardas - para escovar a lã - um armário para expor produtos e um guarda-roupas. Os móveis foram recém-comprados para o negócio.
São três opções de tamanho para o cobertor: o de casal mede 2,20m por 1,90m; o de solteiro tem 2,20m por 1,40m, e o tamanho king size é de 2,20m por 2,40m. O preço muda conforme o produto. Um cobertor de casal, o mais vendido, custa por volta de R$ 400.
— Ele é quente, é para os dias frios mesmo. Antes, eu fazia o fio mais grosso, mas agora faço mais fino porque algumas pessoas preferem que o cobertor não seja tão pesado. Uma cliente me disse que tem um há mais de 30 anos e está direitinho. Dura uma eternidade — afirma.
Gosto de cardar, fiar, tecer, fazer o acabamento. Aí depois vem a peça prontinha.
NOEMI DOS SANTOS LEMOS
Uma das sete artesãs que produzem o cobertor mostardeiro
Noemi fazia e vendia o fio para tricô nos primeiros anos de trabalho. Gostou da atividade e, aos poucos, comprou os equipamentos para o ateliê. Com o conhecimento e estrutura, decidiu empreender e focar no negócio com lã até se aposentar. As horas de trabalho variam conforme a demanda. Se precisa entregar uma encomenda a um cliente, as atividades começam de manhã cedo e podem seguir até a noite. Além de cobertores, ela faz toucas, polainas, mantas e golas:
— Gosto de tudo, até de lavar a lã, que dá trabalho. Gosto de cardar, fiar, tecer, fazer o acabamento. Aí depois vem a peça prontinha. Quando o cliente diz “ah, eu amei o cobertor”, aí compensa. A gente fica feliz. Sempre procuro ter estoque. Quando esfria, vem gente comprar, se não tiver peça, perde de vender.
A filha de 38 anos também ajuda a artesã nas atividades; Noemi, porém, é descrente com a possibilidade de a confecção seguir na família. Essa dificuldade, acrescenta, está relacionada a características do negócio, que afastam novas pessoas da confecção de cobertores: ela mesma conta ter se desiludido da atividade no passado.
— Acredito que o maior problema seja esse de as vendas serem só no inverno. Se a pessoa é aposentada, dá tranquilamente. Já parei e voltei várias porque a gente não consegue firmar por conta de não entrar dinheiro o ano todo. Acredito que as pessoas não se entusiasmam (com o negócio) por isso. Meu sonho é exportar para os Estados Unidos: quando aqui é verão, lá é nevasca — pontua.
Artesã desde a juventude
Mara Souza, 60 anos, trabalhava na confecção de um cobertor de casal para um cliente de São José do Rio Preto, no interior de São Paulo, quando a reportagem esteve no ateliê em Mostardas. O produto era a segunda compra da pessoa, que conheceu o trabalho da artesã por conta de perfis que Mara mantém nas redes sociais para divulgar a produção.
— Se não fosse a página do Facebook, eu já teria desistido porque não teria venda. Não teria como (continuar) se fosse depender das vendas só aqui da região. Em Mostardas, a maioria já tem o cobertor, então o pessoal de fora é que procura mais. Vendo para outros lugares do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo. Também já vendi para o Exterior — pontua.
O preço cobrado pelo cobertor de lã foi R$ 420 mais o custo do envio para a casa do cliente. Para o concluir o trabalho, a artesã estimava oito horas no tear, com a ajuda de uma funcionária. Xergão, mateira, porta-cuia, tapete e poncho, todos de lã, estão entre os produtos vendidos no ateliê.
— Como moro aqui (no ateliê), às vezes sigo trabalhando até a noite. Estou sempre fazendo lã, cardando, fiando, tecendo. No final de semana, se estiver sozinha em casa, estou trabalhando — conta.
O trabalho mais demorado no processo é o de aprontar a lã. A tosquia das ovelhas começa em outubro. Mara compra o produto de propriedades da região - às vezes até ganha, ela conta - por R$ 3 o quilo. Nos meses seguintes, lava a matéria-prima, deixá-la “limpinha” para o início da confecção, que ocorre com a chegada dos dias mais frios.
A moradora de Mostardas trabalha com artesanato desde a juventude. No ateliê trabalha em horário comercial com duas funcionárias. No passado, com a demanda maior, 15 pessoas auxiliavam na confecção:
— Várias pessoas trabalhavam com isso, mas foram desistindo: umas se aposentaram, outras ficaram doentes. Essa juventude não quer saber (do trabalho com lã). Provavelmente seja pelo trabalho que dá, porque exige muita paciência.
Mara tem duas filhas, de 32 e 41 anos, que, segundo ela, não demonstram nenhuma proximidade com a função. Por isso, é assertiva quando questionada sobre o futuro do negócio quando ela parar com o trabalho:
— Termina.
História de mais de 200 anos
A produção de cobertores de lã remete à colonização de Mostardas. Segundo a escritora e históriadora Marisa Guedes, o conhecimento foi herdado de imigrantes açorianos de Rio Grande que colonizaram a região a partir de 1763, há 260 anos, portanto. O avanço do comércio fez a peça ficar conhecida no Estado.
— No momento em que os mascates começaram a trazer mercadorias para a Freguesia de Mostardas, levavam o cobertor, xergões e ponchos para venda em Porto Alegre, Pelotas e Rio Grande. As casas de comércio desses municípios começaram a oferecer o cobertor legítimo de Mostardas, que, com o tempo, começaram a chamar de mostardeiro. Encontramos propagandas do cobertor nos jornais da época, logo depois da Revolução Farroupilha — relata a historiadora.
No início da produção, as peças eram conhecidas como "cobertor de papa": as encomendas levavam até um ano para serem entregues por conta do baixo número de artesãs que trabalhavam com o produto, segundo Marisa. Os primeiros cobertores foram feitos com algodão; depois, os produtores começaram a utilizar lã do rebanho local, o que segue até hoje.
— Apesar de os Açorianos fazerem parte da colonização de vários municípios no Rio Grande do Sul, a técnica da confecção do cobertor trazida por eles se desenvolveu e se conservou principalmente em Mostardas. É o único lugar (no RS) que ainda faz a mesma confecção trazida pelos açorianos: a mesma urdidura, cores e desenhos — afirma a estudiosa.
Segundo a historiadora, por décadas foi difundida a informação de que a peça seria herança de escravizados. Essa ideia tinha como base o fato de Gersulina Maria da Conceição, filha de escravizados, ser considerada a tecelã mais antiga do Estados entre as décadas de 1960 e 1980.
— Eles (os escravizados) faziam os trapeiros, de lã com tiras de tecidos, restos de roupas de seus senhores, visto que os cobertores de lã pura eram destinados aos seus senhores — conta.
O fato de a tradição ter poucas pessoas interessadas preocupa Marisa. Por isso, ela sugeriu ao Executivo municipal a criação da Casa do Cobertor Mostardeiro junto à Casa da Cultura de Mostardas. A ideia, segundo ela, é destinar teares, rocas e cardas para cursos a jovens e pessoas interessadas na técnica:
— Do ponto de vista histórico seria lastimável (se terminasse a produção). Perderíamos nosso vínculo com os colonizadores, com nossos antepassados que tanto lutaram para preservar a técnica de mãe para filhas e netas.
O que diz a Prefeitura
Conforme Sérgio Costa, secretário de Turismo e Cultura de Mostardas, há sete pessoas que fazem a peça no município: quatro na cidade e três no quilombo Teixeiras. Ele afirmou que o novo plano municipal de cultura prevê ações para preservar o cobertor, mas não deu detalhes sobre o que será feito. Costa cita que atividade recente para estimular a produção foi um curso em parceria com o Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar) no Sindicato Rural do município.
O cobertor mostardeiro foi instituído símbolo cultural de Mostardas por meio da lei 2559, de julho de 2009.