Os acordes de gaita que dão corpo a Sonhando na vaneira, um dos clássicos da música nativista, interpretado no vídeo acima, são de Jackson Machado, 19 anos. A malformação das mãos o impede de tocar os 120 baixos do lado esquerdo e dificulta a execução das notas no teclado do instrumento. Barreiras à parte, o jovem de Butiá, na Região Carbonífera, tocou para GZH a canção do grupo Os Monarcas na tarde de quinta-feira (5), assim como o faz nos palcos em parceria com Gabriel Ferraz, a voz e violão da dupla.
Jackson toca gaita desde os 13 anos por influência do pai, Jorge Machado, um músico amador que costumava se apresentar em um programa de rádio transmitido de associações ou Centros de Tradições Gaúchas (CTGs) de Butiá às sextas-feiras. No encontro, já extinto, os participantes interpretavam ao vivo músicas de artistas gaúchos. Jackson acompanhou o pai até o dia 29 de novembro de 2019.
— Ele estava tocando e foi encerrar o programa. Quando terminou a música, largou a gaita no chão, caiu e morreu. Acreditamos que tenha sido um infarto — conta o jovem, que mora com a mãe em Butiá.
Adotou o “Machado” do pai para o nome artístico e herdou uma das gaitas. Por conta da deficiência, o músico não consegue tocar os baixos da gaita - botões na extremidade esquerda que exercem função de acompanhamento. É com a direita que consegue executar as músicas. O braço esquerdo ajuda no “balanço” do fole da gaita.
— Meu professor foi meu pai, mas sempre pego os grandes nomes da música e presto atenção: olho e tento reproduzir, mesmo com a dificuldade que tenho. Vou escutando e adaptando para meu jeito de tocar, tentando chegar o mais próximo do original. Nasci ouvindo música e pretendo ser músico até o fim da minha vida — afirma.
Além do pai, cita outros que o fizeram amar a gaita: Luciano Maia, um acordeonista gaúcho que mora em Lisboa, é a principal referência do jovem no instrumento. Gosta também dos Monarcas, Os Serranos, Albino Manique, além de artistas sertanejos.
O companheiro de dupla, o cantor e violonista Gabriel Ferraz, diz que Jackson canta “Mercedita”, e faz segunda voz em algumas canções. No dia da entrevista, no entanto, o jovem mostrou-se econômico nas palavras.
— Gaiteiro não tem que falar, tem que tocar gaita — justificou.
O encontro
No dia 2 de dezembro de 2022, Gabriel seguia sozinho para tocar em um evento em Aceguá, na fronteira com o Uruguai. Estava há dois anos à procura de um gaiteiro para acompanhá-lo, pois “estava difícil de achar”. Antes, porém, parou em Butiá para uma apresentação em uma pastelaria. No local, tocou músicas nativistas e sertanejas a pedido do público por 40 minutos, com um gaiteiro com quem não conseguia “se entrosar” naquela noite.
Foi quando, motivado pelo dono da pastelaria, o rapaz que havia emprestado a gaita para o show assumiu o instrumento. Gabriel sabia algumas coisas do jovem: era irmão de um amigo e uma pessoa com deficiência. O que o cantor não fazia ideia era que Jackson era gaiteiro, mesmo com a limitação das mãos.
— Foi uma surpresa, me comovi bastante. Ele foi fazer uma participação e continuamos até o fim da noite. Parecia que tocávamos juntos há 10 anos — conta Gabriel.
A parceria daquela noite aproximou os músicos, que, cinco dias depois, subiram ao palco para se apresentar juntos como dupla pela primeira vez, também em Butiá. Desde então viajam para se apresentar em municípios gaúchos.
— Me disseram há alguns dias: “Bah, o Gabriel poderia ter arrumado outro tipo de gaiteiro, melhor que ele (Jackson)”. Não, o melhor gaiteiro para mim é o Jackson. É um cara que veio para completar a minha vida — diz o cantor.
Vida com deficiência
Jackson completou o Ensino Médio - sem repetir de ano, ele sublinha - e até os 11 anos frequentou a Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD), em Porto Alegre, onde fazia atividades de desenvolvimento dos braços. Segundo ele, um diagnóstico apontou que uma malformação na gestação foi a responsável pelo desenvolvimento incompleto das duas mãos (leia mais sobre isso no fim da reportagem). Ele relata ter tentado formas de remediar a condição:
— Sempre consegui me adaptar melhor sem próteses. Hoje, as dificuldades são mínimas. Faço tudo sozinho: dirijo, me alimento, sem uso de adaptação.
Por Gabriel morar em Novo Hamburgo e Jackson seguir em Butiá, eles têm de combinar horários para ir aos shows. Já tocaram em diversos pontos do Estado nos primeiros quatro meses de parceria. O fato de o gaiteiro “não ter” mãos tampouco tem atrapalhado a logística e o deslocamento das viagens dos músicos. No palco, o jovem conta ter boa recepção de quem o assiste tocar:
— As pessoas tiram fotos, filmam, me tratam normalmente. Se algum dia falaram alguma coisa, nunca dei bola também, porque isso (a deficiência) nunca me afetou. Sempre tive amigos, e eles nunca foram preconceituosos comigo. Na escola sempre fui querido por todos, graças a Deus. Tenho uma vida normal.
Explicação médica
Lavínia Schuller Faccini, professora do Serviço de Genética Médica do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), diz que casos parecidos ao de Jackson são chamados de oligodactilia, ou seja, falta de um ou mais dedos. A condição não é de origem genética e ocorre um caso a cada 2 mil nascimentos em média, diz a especialista:
— É um problema que ocorre durante o desenvolvimento do feto, que é envolvido por membranas amnióticas, como um lençol, que protege o bebê. Algumas vezes, essas membranas “se enroscam” no membro e atrapalham o fluxo de sangue que está indo para o membro em desenvolvimento.
Em situações similares a do músico, não significa que a pessoa não tenha as mãos, esclarece Lavínia ao ver o vídeo da apresentação de Jackson.
— Não estou vendo o raio-X para observar todos os ossos, mas parte da mão está ali, sim. Até porque ele faz alguns movimentos. A gente vê o pulso, vê a mão, o que ele não tem basicamente são todos os dedos — acrescenta.