Egui Baldasso (e.baldasso@gmail.com), especial para o Almanaque
Reconhecer interesses, entender o diferente e respeitar a todos. Verbos que se misturam em uma frase óbvia, mas que na prática tendem a demorar mais para ser realidade do que em um texto escrito. E essa mesma mistura de ações é parte da convivência em um local onde todas fazem a diferença entre manter padrões ou transformá-los desde muito cedo. Dentro da escola, jovens de toda a região têm demonstrado que empatia se aprende no dia a dia, nas pequenas iniciativas que tornam-se gigantes, justamente porque mudam vidas. No bairro São José, na Zona Norte de Caxias do Sul, um exemplo recente disso mobilizou uma turma inteira do terceiro ano do Ensino Médio na Escola Estadual Evaristo de Antoni. Tudo para que um aluno vindo do Senegal, que ainda não fala português, se sentisse acolhido.
Aos 17 anos, Cheikh Ibrahima Fall Diegn chegou ao Brasil no começo de 2023, cheio de sonhos e vontade na bagagem, todos eles falados e pensados em francês, único idioma que conhecia até o momento. Contudo, a dificuldade com a língua e o jeito tímido de lidar com o mundo fizeram com que não interagisse com os colegas. O isolamento do senegalês incomodou outro aluno, o brasileiro Vinícius Rodrigues da Silva, também de 17 anos, que não aceitou quieto a situação. Logo nos primeiros dias, tentou entrosamento por meio de gestos e utilizando um aplicativo de tradução. Então, começou a passar o conteúdo para o francês, da melhor forma que conseguia. Como o novo amigo trazia folhas em branco para copiar, Vinícius também providenciou cadernos, que facilitaram toda a dinâmica.
— Eu conversei com a direção para ver se eles iam fazer atividades especiais já traduzidas, mas não me deram uma resposta certa. Por isso, passei a traduzir. Foi quando percebi que ele também não tinha caderno. Por sorte, este ano havia comprado alguns, e pude dar os meus que estavam sobrando — conta.
Iniciativa que contagia
O envolvimento não demorou muito tempo para estender-se para toda a turma. Incentivados pela professora de língua portuguesa Andriele de Oliveira da Rosa, os alunos fizeram uma vaquinha para comprar um celular para Cheikh, e auxiliar na comunicação.
— Naquela noite, o irmão (do Cheikh) me ligou para entender melhor toda a história e confirmar que nós havíamos dado o aparelho – lembra Vinícius, que ainda salienta a facilidade do colega com a matemática e, claro, o futebol que serve como belo pretexto para integração.
Surpresa e impressionada com a ação dos jovens, a diretora da Evaristo de Antoni, Ingrid Piccini, comentou todo o trabalho realizado para receber os estrangeiros, apesar das dificuldades na infraestrutura, que inclui a falta de um docente específico para o ensino do francês.
— A gente faz o melhor possível com o cenário que temos. Professores e funcionários fazem tudo que podem, mas esbarramos em certas limitações. Contar com o apoio vindo de sala de aula facilita muito, principalmente pelo caráter acolhedor que demonstraram. Isso nos deixa muito gratos — pontua.
A fluência na língua ainda pode demorar um pouco entre Cheikh e os brasileiros, mas a vontade de acolher e integrar alguém de outro país e de uma cultura totalmente diferente já é realidade. Empatia que, além de aprenderem na escola, os alunos da Evaristo de Antoni já ensinam para quem quiser ver.
Acolhida é coisa da Serra
Tabuleiros de xadrez, uma mesa de pebolim e um pátio de escola. Neste cenário, alunos brasileiros, alguns venezuelanos e um senegalês se divertem sem muita preocupação, além de estarem ali. Diversas línguas, cores e culturas. Um único pensamento: aproveitar a infância. O que parece a trama de um filme da Sessão da Tarde é a realidade diária da Escola Municipal Antônio Minella, em Farroupilha, há alguns anos. É lá que Mouhameth Ndiake, 10, nascido no Senegal, e Hector Antonio, um venezuelano de 12, estudam e brincam todas as manhãs. E aprendem que acolhida também é coisa da Serra gaúcha. Tímido e acostumado com o Brasil, Mouhamet, há cinco anos morando na cidade, está tão inserido na nova cultura que quase esquece o francês, sua antiga principal língua, e conversa tranquilamente num português praticamente sem sotaque. Com menos de um ano por aqui, Hector ainda pensa para buscar palavras e acertar conjugações para se comunicar, mas sente-se em casa quando o assunto são os colegas e amigos.
— Desde o começo todos foram bem legais, me ajudaram a aprender rápido, e em três meses eu falava português. Hoje, tenho muitos amigos fora da escola — revela Mouhamet.
Situação parecida com a de Hector, recebido como mais um igual entre os estudantes.
— Nos primeiros dias já me chamaram para jogar bola, me colocavam nas brincadeiras. Como eu sabia que viria para o Brasil, aprendi um pouco da língua, e aqui com os colegas fui aprendendo mais — resume.
O garoto ainda é todo cuidadoso com o primo Marco, também da Venezuela, diagnosticado com o espectro de autismo, e que frequenta a mesma escola. Os brasileiros que dividem as brincadeiras e os dias em sala de aula nem notam que são de nacionalidades diferentes. Em meio a tantos desejos de todos de fazerem parte do mesmo grupo e apenas serem felizes num dos melhores tempos da vida, possíveis preconceitos e diferenciações sequer são ameaças. Andam bem longe dos muros do colégio. A amizade também virou tema de casa.
A diferença é a grande lição
Quando Yasmin dos Santos Laurino foi matriculada na Educação Infantil do Colégio São José, em Caxias do Sul, os pais tinham apenas um objetivo: que ela fosse mais uma aluna com rotina, vontades e entendimento de suas limitações e habilidades. Como qualquer criança que chega para o primeiro dia de aula e perde-se em um mundo de desafios e possibilidades. A diferença para os demais colegas era o diagnóstico com quadro de imaturidade psiconeurológica, condição que convive desde o nascimento e ocasiona dificuldades na aprendizagem e comunicação, mas que jamais a impediu de quebrar as próprias barreiras. Hoje, aos 15 anos e no 7º ano, segue superando a si mesma, completamente socializada e muito próxima dos objetivos traçados junto com pais, professores e toda a direção.
Ainda com certa dificuldade na fala, comunica-se também pelo sorriso e por um olhar atento e que não demonstra qualquer fraqueza. As atividades no contraturno na chamada Sala de Recursos, onde funciona o Atendimento Educacional Especializado (AEE) – atualmente atendendo cerca de 20 crianças e adolescentes –, ajudam na evolução diária da estudante. Quem acompanha o aprendizado de Yasmin de forma mais próxima é a professora responsável pelo AEE, Silvana Camazzola. Conforme relata, as habilidades e limitações de todos os alunos, inclusive os com algum tipo de deficiência, são testadas diariamente para que os professores saibam como lidar com todos eles.
— Para se ter uma ideia, um dos objetivos básicos no ensino com os alunos é que eles sejam capazes de escrever parágrafos com as classes gramaticais. Estudantes como a Yasmin têm a meta de escrever palavras, com a mediação do professor, com as classes gramaticais. Numa avaliação, ela não vai escrever respostas completas, mas algumas palavras, inserida nos exercícios e mostrando evolução — explica.
Silvana salienta a importância da educação digital oferecida pelo São José no processo que, segundo ela, permite que Yasmin apresente resultados significativos.
Diminuindo distâncias
Em sala de aula ou em outras atividades com as amigas, o convívio é enriquecedor para ambos os lados. O relato da colega de Yasmin, Martina Chuvas Ckless, confirma o crescimento mútuo.
— É um privilégio ser colega dela. A nossa convivência é muito boa. Nós fizemos trabalhos em grupo, ficamos juntas no recreio. A Yasmin adora falar como é a vida dela, fala da cachorrinha. Mais pessoas deveriam ter o privilégio de colegas diferentes, porque isso nos ensina muito — garante.
Yasmin segue seus dias sem importar-se com julgamentos alheios. Tem assuntos mais importantes para se preocupar. Como o próximo passo de uma caminhada um pouco mais difícil que para a maioria, mas com a mesma garra, quem sabe até maior. Neste ano terá sua festa de debutante, com o vestido azul já separado e os preparativos tomando forma. Quem estiver no evento verá o que as amigas testemunham todos os dias. A força de Yasmin a define muito mais do que qualquer deficiência.
O fim do preconceito vem do convívio
Os 43 anos de magistério da professora Lorita Menegon de Souza, 69, têm como grande marca a provação. Não para si mesma, porque sempre soube de suas capacidades, mas para uma sociedade que ajuda a melhorar justamente por meio do que muitos sempre disseram-na que seria seu impedimento, a deficiência física. Nascida com escoliose, com diversos agravamentos ao longo da vida, foi julgada inepta para o trabalho ainda na juventude, sem jamais aceitar o veredicto.
A professora natural de Veranópolis e radicada em Caxias do Sul carrega a inclusão como principal legado.
— Eu ouvi muita coisa desde cedo. Em casa, minha avó dizia que, como eu era um pouquinho torta, os alunos ficariam impressionados e não prestariam atenção. Depois, um médico disse que eu era como um edifício construído com material de segunda mão, que um dia apresentaria infiltração e até poderia ser demolido. Eu vivo provando que sou de primeira, que não existe ser humano de segunda. A partir de lá, a minha luta começou — relembra, emocionada.
Mãe de duas filhas, uma médica e outra psicóloga, com quem conversa diariamente sobre diferenças entre as pessoas, desde 2001 trabalha com alunos do Colégio São José, para onde leva o mesmo tema tratado em família.
— Todo primeiro dia de aula eu peço que me olhem, que vejam meu problema. Eu sou torta. Meu nome é Lorita e é assim que vocês irão me chamar. E conto a minha história para que ninguém menospreze ninguém. No fim do ano, eles dizem que eu estou mais reta. Eu não mudei em nada, o que mudou foi olhar deles. A convivência faz isso, nos acostuma — enfatiza.
Na opinião da professora, ainda falta muito diálogo dos pais com os filhos no ambiente familiar, ressaltando que algumas crianças são diferentes, mas que as limitações não devem esconder habilidades.
Diálogos deixam marcas
São muitas as histórias de confrontos e ensinamentos que Lorita coleciona em sala de aula. Uma delas, lembra, ocorreu com um menino deficiente auditivo que havia sido ridicularizado por um aluno mais velho. Ela conta que, ao deparar-se com o garoto chorando depois da cena, procurou o algoz e, com um discurso firme e esclarecedor, lembrou que a deficiência não era o principal entre eles, mas o que cada um tinha como capacidade. Após o ocorrido, a mãe do aluno com deficiência a procurou agradecendo a defesa, e que o filho tinha chegado em casa feliz porque, pela primeira vez, alguém parou uma aula para protegê-lo.
— Mas o melhor veio dias mais tarde, quando a outra mãe, a do confrontado, veio a mim contando que o filho estava melhor, com um comportamento diferente, e relatou o episódio com ela, garantindo que eu tinha deixado uma marca nele — aponta, satisfeita.
O que Lorita não sabe, talvez, é que o seu exemplo fica para todos que com ela convivem. Saem melhores. Como a professora ensina, a convivência com o diferente proporciona tudo isso.
Uma rede de integração
O aumento nos últimos anos no número de crianças e adolescentes diagnosticados com o Transtorno do Espectro Autista trouxe novo desafio para a cadeia de ensino do Estado. Antigas práticas precisaram ser revistas para que a inclusão desses alunos virasse realidade tanto na rede particular, quanto na pública. Escolas de todas as cidades passaram a tratar do tema de forma objetiva e prática, derrubando preconceitos e mitos, buscando a integração entre todos os estudantes. Este é o trabalho do professor de AEE com especialização em Educação Especial Inclusiva Cristofer Almeida de Menezes, 41, que atua junto à diversas instituições de Caxias do Sul, por meio da Secretaria Estadual da Educação (Seduc). De acordo com ele, a orientação da pasta é focar o atendimento nos alunos com alguma limitação, seja ela física-locomotora, auditiva, visual ou cognitiva.
— Nosso trabalho é fazer com que eles tenham o poder de participação em todas as atividades propostas, desde a sala até o acesso aos banheiros, refeitórios e outros equipamentos, inclusive com as adaptações necessárias — afirma.
Para Cristofer, o acolhimento natural dos demais alunos é facilitado pela apresentação da pessoa com deficiência, ou mesmo com o espectro autista, em sala de aula para a classe e o quadro técnico de professores.
— Todo esse movimento é para demonstrarmos aos familiares e tutores legais que eles estão deixando a criança ou o adolescente em um espaço que zela pela segurança, a saúde e o ensino de qualidade — destaca.
Uma das alunas acompanhadas é a jovem Julya de Azevedo Borba, 15, diagnosticada com o transtorno. A amante de livros e futebol está no 1º ano do Ensino Médio da Escola Estadual Evaristo de Antoni. No seu processo de autodescoberta e afirmação da identidade, Julya enxerga-se com muito mais potencialidades do que defasagens, as quais busca aprimorar nos exercícios de contraturno. As leituras servem como complementação para esse objetivo, rompendo o paradigma de trabalhar somente em sala de aula.
— Ela apresenta resultados incríveis, que seguem em evolução, também graças a esse incentivo às capacidades individuais — sintetiza Cristofer.
Ele revela que a rede com pais e profissionais da saúde envolvidos é estabelecida com reuniões semanais entre as partes, aproximando assuntos e questões referentes ao dia a dia dos alunos.
A importância do acompanhamento psicológico
A sala da psicóloga Andressa Piana, na clínica caxiense Entre Raízes, vive cheia de movimento e desafios. É onde a profissional pós-graduada em Terapia Cognitiva Comportamental e com especialização em Intervenção Análise do Comportamento Aplicada no Autismo (ABA, na sigla em inglês) atende crianças autistas e acompanha suas rotinas, trabalhando a autorregulação por parte dos pacientes. Melhorar as habilidades sociais, comunicação e comportamentos, além da orientação psicológica para a família, estão entre as responsabilidades dos profissionais que atuam na área.
— O foco está no desenvolvimento das crianças. Algumas precisam de auxílio para saberem como se identificar como sujeito, precisando compreender a visão de si e do mundo. Na clínica, abordamos o estímulo cognitivo, por meio de brincadeiras e atividades lúdicas que ajudam na evolução dos quadros — salienta Andressa.
Nos trabalhos realizados estão o reforço dos comportamentos positivos, a aquisição de independência e a melhor qualidade de vida possível do indivíduo.
A família inserida no processo
Há poucos anos, o diagnóstico do autismo era demorado e de difícil acesso aos pais, o que criava uma barreira para a compreensão do panorama dos filhos. Com a evolução nos acompanhamentos e diagnósticos, ainda antes do primeiro ano de idade já é possível identificar o transtorno, o que facilitou também o entendimento das famílias. Mãe do menino Zyon, quatro, diagnosticado com autismo com menos de dois anos, Bruna Gonçalves Vieira, 30, acompanha todas as sessões dele na clínica, e desde o começo do ano vive a nova realidade de ter o filho matriculado na educação infantil do município. Depois dos primeiros momentos de medo e angústia, Bruna revela que relutou com a ideia de deixá-lo frequentar a escola, mas que a boa adaptação, aliada à presença da acompanhante terapêutica, a tranquilizou.
— Meu medo maior era o medo do preconceito dos outros. Ouvi muitos casos de crianças que foram excluídas por serem autistas. O Zyon não fala, não socializa, e eu tinha medo de que, se acontecesse alguma coisa, a escola não contasse — admite.
A convivência com os demais colegas melhorou muito o comportamento social.
— Quando ele começou lá, tinha medo das outras crianças, e em menos de um mês já aceita os coleguinhas abraçarem, tocarem. Aprendeu a esperar a vez dele na escolinha. Antes, ele levantava e ia. Hoje, entende que precisa esperar quando chamam — conclui Bruna.
Já ambientado à Escola Nossa Senhora de Fátima, no bairro Fátima, o garoto desfruta a oportunidade de contar com a rede pais-escola-psicólogas bem estruturada, e um mundo que, mesmo longe de ter um cenário ideal para alunos como ele, já entende que o diferente também faz parte, e merece toda inclusão.