Carisi Anne Polanczyk (*)
Vivemos um período de total conexão entre as pessoas. Hoje nos conectamos com indivíduos do outro lado do mundo com alta qualidade, no mesmo instante. Temos inteligência artificial, teletransporte holográfico, metaverso e outras tecnologias revolucionárias, que colocam o globo na palma da mão. Seria esperado que, com essas conquistas, tivéssemos um crescimento de valores pessoais nobres, redução das desigualdades sociais e um legado social pujante.
Eis o paradoxo: apesar de tamanha conexão, seguimos isolados em nós mesmos. Para além das já conhecidas cenas de pessoas com os olhos permanentemente colados nas telas, refiro-me a outro distanciamento: de quem se difere de nós. Vemos extremos disputarem espaço e se fecharem em suas ideias, sem abrir qualquer diálogo com o outro. Vemos indivíduos nutrirem ideias condenáveis como racismo, antissemitismo, misoginia e autoritarismo com naturalidade.
Há, também, os movimentos identitários, sob os quais a psicanalista Élisabeth Roudinesco discorre em seu livro O Eu Soberano. Ela reflete sobre as mudanças da identidade coletiva para indivíduos e traz o conceito da deriva identitária _ ou seja, definir-se unicamente por um marcador particular, relacionado com cor, sexualidade, gênero, ou religião. Iniciativas que foram (e são) fundamentais na luta contra a homofobia, o racismo e outras formas de preconceito. Todavia, se antes havia uma coletividade comum, hoje vivenciamos um momento mais solitário.
E nesta deriva identitária, grupos se enclausuram em seus demarcadores em vez de explorarem conexões. Questões subjetivas ganharam maior ênfase, substituindo as lutas políticas de grupos socialmente excluídos. Por outro lado, surgem movimentos que buscam, justamente, combater tais avanços, cultivando ideias retrógradas e segregacionistas, numa afronta à liberdade individual e à diversidade humana.
Conferencista do ciclo Fronteiras do Pensamento em 2022, Roudinesco traz ao debate o conceito da pulsão de morte, introduzido originalmente por Sigmund Freud: uma pulsão que leva à segregação e à autodestruição humana. Um impulso que, também, estimula este isolamento, bem como está na raiz da ascensão das ditaduras, do fascismo, das fake news e da agressividade com que o diferente é visto — perdendo a chance de fazer um sentimento coletivo prevalecer na busca de um mundo melhor.
Como superar tais desafios em um mundo tão polarizado? Não podemos esquecer os aprendizados de séculos sobre comportamento humano em relação ao idealismo político, religioso e identitário. As tecnologias e inovações de uma sociedade moderna não podem minimizar o aspecto humano e o eu individual, tornando-os pouco visíveis atrás das telas de celulares ou computadores.
As lutas identitárias são os pilares de uma sociedade mais justa - e as minorias devem ser abrigadas. Mas, também, é preciso olhar o ser humano em sua complexidade, como indivíduo que não se resume a uma ou outra definição. Ideologia, cor, gênero, nacionalidade, todos esses demarcadores formam esta multiplicidade inerente a cada um.
Se há uma deriva a seguir diante desse isolamento, deve ser aquela que nos une: a busca pela felicidade, pelo bem-estar, pelo altruísmo e pela vida. Estimular uma visão de comunidade, respeitando as identidades de cada um e combatendo as ideias segregacionistas. Um esforço de todos — e para todos — para nos desenclausurarmos. Ainda há tempo.
(*) Chefe do Serviço de Cardiologia, Cirurgia Cardíaca e Vascular do Hospital Moinhos de Vento